sexta-feira, setembro 21, 2001

Quando eu era criança, e quando eu era adulta, e quando eu não sabia se era uma coisa ou outra, ou a mistura dos dois, eu ficava imaginando se seria possível atravessar o espelho, e viver a vida invertida que havia lá dentro. Depois eu entendi que os espelhos não podem ser atravessados por quem se faz enxergar neles. Depois eu descobri que podem.
Dentro do espelho é tudo sem sentido. Sentido é só fora dele, embora dentro sinta-se tudo. Só que não se sabe. Saber é secundário. O sentido. Os sentidos têm focos invertidos, e o mais visto é o que não se viu. O mais ouvido é o silêncio. O mais degustado não tem gosto. O maior cheiro é só uma lembrança. Dentro do espelho é impossível compreender, por isso é tudo tão claro e límpido.
Voa-se, lá dentro. Fácil, fácil. E longe, que é logo ali. Mergulha-se fundo atrás de tesouros que não há, e se os encontra. Brilham. Mas não se traz o tesouro, que é só lá que ele vale. Há liberdade dentro do espelho, e a prisão é fora. Ninguém vai ao espelho se não inteiro. Finge-se. No espelho se é uno. E muitos, mas completo. Ambíguo, inversamente paradoxal.
Pode-se cobrir o espelho, e ele ainda é. Pode-se - não se deve - quebrá-lo, e ele ainda é, múltiplo. Pode-se ignorá-lo, mas nunca esquecê-lo.
Espelho não tem vontade. Tem só verdade.