sexta-feira, junho 28, 2002

Olhava através da janela... e do ar, e dos pássaros, e árvores, e nuvens, e via. Via nítido, embora não compreendesse. A sensação era de iminência. Riu. Aquilo era ridículo. Iminência não era sensação que se tivesse. Mas como chamar aquele suspiro, aquela vigília? Que nome dar a isso que se parece com o que sente o cais quando o barco se aproxima?
Ouvira falar uma vez de um barco não sei onde que chegou com tanta força que quebrou o cais, pensou então que ser cais assim passivo e imóvel era muito doído. Quando se é cais tanto o partir quanto o chegar do outro são intocáveis. Não se pede e não se nega a chegada. Não se apressa e não se adia a partida. Então é dor o tempo todo, dores diversas. A de chegar é medo, a de não chegar é solidão. A de não partir é culpa, a de partir é saudade. De tanto não pedir e não negar nada acabou aceitando as dores todas.
Desejara uma vez ser barco em vez de cais. Desejara na sombra e no silêncio da maré baixa. Seria o mais belo e preciso dos barcos, que chega e vai embora somente no tempo certo. Um barco como nenhum outro. Temeu e preferiu esquecer. Sentiu alívio pela sombra, pelo silêncio da maré baixa, e olhou de novo através da janela, do ar, dos pássaros...

quinta-feira, junho 27, 2002

A primeira metáfora havia sido do Drummond. Treze, quatorze anos, talvez. Atravessara-lhe de uma só vez.

"Como pode existir, pensou consigo..."

(era o marciano que pensava, o que encontrou o Drummond na rua)


"...um ser que no existir põe tamanha anulação de existência?"


A anulação da existência ficou ali entalada, talvez para sempre. Talvez porque até ali - e não tinha ainda esse pensamento pensado, só sentido - existir fosse a própria anulação, uma vez que era um existir passivo e então parecia sinônimo de esperar.
Esperar.
Coisas e pessoas, momentos, iniciativas, coragens. Esperar. O fim do dia, o fim da semana, o fim do mês, o fim do ano... O fim.
Esperar o tempo certo. 'Tempo' e 'certo' não combinam se o assunto é vida. Nada mais incerto que o tempo.
Odiou o marciano e o Drummond.


Não seria a única, esta. Viriam outras. Foi-se tornando lenta e progressivamente mais vulnerável a elas. Até a escravidão, quase consciente, quase voluntária. Persiste ainda a anulação da existência atravessada lá dentro. Talvez ainda hoje seja este o motor de todas as outras metáforas. Anular a anulação.
Falar, ouvir, rir, chorar, correr, atirar-se, morrer, acabar, recomeçar. Fazer certo o mais incerto dos tempos - agora. Amar o marciano e o Drummond.
Existir, ou ao menos tentar.

quarta-feira, junho 26, 2002

Olhando lá em cima só nuvens. E um vento daqui a pouco que sopra não sei de onde não sei para onde
e

abre _ as

nuvens _ _ _ feito

cortina _ _ _ _ _ assim

para _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ lá e

para _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ cá.


A lua
no meio.
Louca.


Ela é branca e cinza, tão luminosa que parece a gente quando sorri. A nuvem não fica para sempre, mas quando ela está lá é como se nunca fosse embora. É triste a lua escondida. Olhando lá em cima é tão escuro. Daqui a pouco a luz azul. A terra azul. A água azul. A gente azul. A gente azul tem menos medo. Tem mais tempo. Tem menos limites. Olhando lá em cima é tão difícil. Aí vem o vento. Nem todo limite é para sempre.

terça-feira, junho 25, 2002

A menina procurava a palavra.
Era para dar de presente.
Uma palavrinha só, simples.
Que contasse a menina...
...como ela não sabia que era.
A menina não a achava entre as suas.
Umas sumiram, outras envelheceram.
Estranho menina de palavras velhas.
A menina queria a palavra.
Uma que tivesse muita verdade.
Mas a verdade dói tanto.
Então ela esperou muda.
(pausa para o silêncio da menina)
Desejou a palavra transparente.
Lisinha assim polida e sonora.
Difícil polir com mãos trêmulas.
Elas saíam cortantes, algumas.
'Se eu conseguir, meu amor,
Te faço uma palavra nova,
De tão nova que você me faz.'

segunda-feira, junho 24, 2002

Muito bonito hein menina. Tudo errado de novo, será possível. Impensável. Inconcebível. Inaceitável. Engole o choro. Choro é chantagem, sabia não. Quer que sintam culpa é. Coisa de mulezinha. Não sabe nada também essa menina. Diz fazer desfaz. Diz erguer derruba. Diz atrair repele. Diz esquecer remói. Olha pra mim menina. Não. Olha pra você. Tudo tão simples complica. Tudo tão fácil dificulta. Fala por quê menina. Essa menina muda, vê se pode, ficasse antes. Fica muda quando quer. Quando não quer se espalha espelha explode em relâmpagos-palavras. Mereço isso menina fala. Fala. Falar que não consegue não é falar. Fala anda. Muda de novo. E agora o vaso quebrado o leite entornado o dia perdido. Menina adora perder, acha bonito, só pode. Que palavra é essa aqui que você escreveu, não existe. Tanta palavra pra escrever escolhe esta. Tantamulherpraserescolheesta. Tantamulherpraqueseresta. Tantamulheresta. Quer ser palavra, que ridículo. Não existe ser palavra. Entende que não existe a palavra. Entende que não te entendam. Não dá pra entender essa menina. Dorme menina é melhor. Ao menos dormindo você não chora.

domingo, junho 09, 2002

Parecerá dia, de tão claro. Uma dessas horas em que dia e noite se confundem por causa de algo que pode ser mistério ou surpresa. talvez por causa da lua imensa boiando lá em cima. Parecerá inalcançável, a lua. Um uivo ao longe. Não, não para a lua, mas por causa dela. Veja, é à luz da lua que se enxerga a caça, então é hora de pedir reforços. Um chamado. Plácidas, imensamente distantes, lá estarão as estrelas. Por isso é que você dirá que a felicidade é um monte de estrelas. Escuro e luz. Escuro. Luz. Escuro. E os pontos de luz que afinal são tão esparsos parecerão tão próximos, tão partes de um todo tão grande, que será como se fossem um só. É assim que a gente precisava ser feliz. Como se pontos feito agora jamais fossem estanques. Muitos agoras esparsos, e é certo vê-los todos algum dia. Então você lembrará que o céu é um só, não importa onde, e atinará que eu também estarei vendo as mesmas estrelas. Será possível estarmos assim tão perto?







sexta-feira, junho 07, 2002

Ela o olhou daquele jeito indecifrável, e a única certeza que ele tinha era a de que estarem juntos era bom. Um sorriso cansado, quase triste, mas tão transparente que ele chegou a pensar poder-lhe ver parte da alma nele. Perguntou se ele conhecia a história, ele disse que não, pediu a ela que contasse. Ele gostava de ouvi-la, achava divertido quando ela dizia que o jeito dele olhar e ouvir era o de quem abraçava. Talvez ele abraçasse a si mesmo, nela.
O olhar dela passeava devagarinho entre o horizonte lá longe e o fundo dos olhos dele. Então contou:
Havia um rei muito poderoso. Forte, altivo, valente. Desses de antigamente, que iam à frente nas batalhas, conquistavam terras, subjugavam inimigos. Nada o intimidava. Ou melhor, quase nada. Havia um espírito mau. Era assim feito um fantasma que vinha de noite, às vezes de dia, e o atormentava. O rei na sua realeza se via indigente. Via-se desvalido em plena valentia, e sofria. Havia um menino que tinha uma harpa. Então veio o menino com a sua harpa, e a música do menino espantava o espírito mau. O rei não conhecia o menino, mas percebeu que era bom tê-lo por perto. Se ele se afastava, ou silenciava, vinham de novo os tormentos, então o rei chamava de novo o menino.
Não se sabe quantos foram os sentimentos. O absurdo da pureza extrema do menino diante da tão imensa escuridão da alma do rei. Observavam atônitos, suspensos. Viam a cena, ambos, mas era um ao outro que olhavam. A história nem era assim tão bonita, mas algo lhes dizia que a deles poderia ser mais. E seria.

quarta-feira, junho 05, 2002

Remexendo o baú...
Um texto antigo e esquecido (saudades, capitão), desses que a gente nem sabe mais que escreveu... publico aqui assim, de uma entornada só, mais pra mim mesma do que 'pras visitas', que espero que me perdoem o abuso do tamanho... ;-)



Muito Estimado Capitão Ramalhete

Espero que esta venha a encontrar-te gozando da mais perfeita saúde e segurança nesta longínqüa Austrália. Na verdade nem tenho como certo que o encontrará, haja vista o desconhecido do teu paradeiro, homem de tamanha intrepidez e espírito de aventura. Valho-me unicamente da fama transoceânica que já há muito envolve o Ramalhete, digo, o teu honrado nome.
Mas o que me move no escrever é hoje mais do que unicamente a amizade, muito embora seja ela motivo suficiente, não nego. Falando em amizade, cabe ressaltar a grande estima que lhe guardamos todos os da família, já desde o tempo do meu amado e finado Feliciano até os dias de hoje. Tanto de minha parte quanto dos pequenos Abigail e Terêncio, até - e mui especialmente - minha irmã caçula e única. E é Équidna, de fato, o que me leva a te escrever estas linhas. Não, não esta équidna que já decerto viste aí, bichinho gracioso, semelhante à andorinha, de formas belas e vôo majestoso - sabes que apenas repito de cor o conhecimento absorvido de nossos serões, tão zelosamente guardados aqui no fundo da memória.
Aliás, essa noite em que conhecemos o bicho-équidna foi marcante em muito, conto logo. Sabes, Capitão, que muitos dos conhecimentos ali adquiridos me foram já de utilidade vital? Não faz muito o Terencinho - ah, como me dá trabalho este menino - veio dizendo ter visto num dos alfarrábios da biblioteca do Padre João um capítulo que dizia ser équidna "um bicho estranho, quase um porco-espinho, mas com bico e botador de ovos, que no entanto mama e amamenta". Se engano ou peraltice não sei, mas é claro que pude fazer-lhe uma preleção severa e um castigo moderado, e o episódio não nos pôde arrancar aos olhos a beleza e graça que aprendemos de tua experiente sabedoria.
Ah, sim, falava eu de Équidna. Équidna não-bicho, isso. Équidna minha irmã. Ah, não sabias ser Équidna o nome de minha irmã? Não te assombres, poucos sabem, e se não o revelamos no momento oportuno foi por cuidados meus e timidez de Équidna. Chamamo-la carinhosamente 'Dininha', desde a mais tenra infância, por conveniência, e julgávamos ter sido motivo do nome algum erro de nosso finado pai quando do batismo. Não nos parecia possível que existisse um nome assim estranho. E agora, às vésperas do trigésimo terceiro aniversário de minha irmã, surge a novidade. E pensas que foi para Équidna vergonha ter nome de bicho? - atente para o fato de que também eu o tenho, e portanto não me passaria pela cabeça caçoar de minha irmã - Pelo contrário. Exultou pelo nome não-inédito, e agora não há o que lhe ocupe mais os pensamentos do que conhecer de perto, "de vista, mão e cheiro", como diz a própria, o bicho que lhe deu o inusitado nome.
Cesso por um momento o relato das angústias familiares para uma breve reflexão. Tivéssemos eu e Équidna irmãos homens, dado o presumido gosto de papai pelos animais iniciados por 'E', que nomes teriam? Elefante? Esquilo? Até que não nos foi tão rude o destino.
Oh, Capitão... volto à pauta esclarecendo que não será sem constrangimento o meu esdrúxulo pedido, que já lhe deve rondar os miolos a essa altura. Fa-lo-ei já, falo antes de Équidna um pouco mais. Minha amada irmã, sabes bem, é de saúde frágil. Chego a folgar secretamente - não sei se peco - no fato de não ter sido a ela concedida a ventura do matrimônio. Não me tomes por desnaturada, que me explico. É que precisa de cuidado, a pobrezinha. Não suportaria a atarefada rotina de esposa e mãe, embora - conto-lhe secretamente, conto com a discrição de costume - eu tenha cá comigo a impressão de virem daí, da falta, digo, da falta da rotina de esposa e mãe, muitos dos azedumes e flagelos que a ela teimam em assaltar. E são tantos, Capitão! Teve febres, dia desses. Dores tantas, indigestões. Terrores noturnos, eventualmente. Pesadelos, muitas vezes. Ah, Capitão, quisera eu conhecer a causa e a cura de tão grande mal...
Alívio sutil foi concedido pelos céus a minha querida irmã nas últimas semanas, desde que se soube homônima do bicho australiano. Graças ao belo desenho - lembras-te do desenho? - que tão apressadamente fizeste, até hoje guardado como relíquia no baú de lembranças do quarto, não há na família quem não conheça as suaves formas da équidna, entenda-se, o bicho. Bordada em toalhas e guardanapos, pintada em telas e - pasme - até riscada a traços de carvão na parede do quarto! E os escritos? Poemas, odes, acrósticos, elegias e todo tipo de louvores ao mimoso bichinho. Agora as idéias de viagem, que muito me assustam. Imagine que Équidna sonha - somente dormindo, presumo de ouvir-lhe as falas da madrugada - ir à Austrália! Ah, a Austrália...
E aprouve aos mesmos céus, Capitão, meu bom Capitão, justo nesse momento crucial da vida de Équidna, enviar-te a ti à terra do bicho-nome. De posse deste saber. e do saber de teu já conhecido espírito de solidariedade e amor ao próximo, é que venho pedir-lhe o obséquio de realizar o sonho de minha irmã, Não o de ir a Austrália, que a ela falta saúde e força, mas o de conhecer de vista, mão e cheiro o bicho cujo nome lhe foi dado. Peço-lhe encarecidamente o favor de vir ter com Équidna, trazendo-lhe de presente o objeto de todos os seus sonhos recentes: Uma équidna-bicho, ou filhote, ou ovo. Algo que encherá de alegria os dias e o coração solitário de minha irmãzinha. Creio e tenho certeza de que tanto a tua presença quanto a do mais belo animal já visto por olhos humanos, esta beleza da qual minha irmã teve a sorte de herdar o nome, hão de tornar a nossa Équidna a mais feliz das almas.
Encerro aqui esta singela carta, rogando aos céus pela tua saúde e breve retorno
Respeitosamente,

Ema D'Albuquerque Feliciano