quarta-feira, maio 29, 2002

Eu queria pintar um quadro agora. Só assim eu ia poder gritar. Grito de palavra é tão difícil, e quase nunca tem ninguém pra ouvir. Queria pintar um quadro assim todo bagunçado. Abstrato, né? É, desses que pulam em cima de quem olha. Será que alguém vai olhar? Todo artista tenta botar na obra o seu grito, mas acho que ele não é ouvido, não. Porque quando você olha, ouve, lê, põe a mão numa obra de arte, na verdade o que vem é o seu grito, mesmo. Você escuta o que o artista disse do que você mesmo queria ter dito, entende? Eu queria fazer uma música hoje. Não. Queria fazer uma sinfonia. Ela seria bruta, forte, muito intensa. Por falar nisso, como pode você, você aí, ser tão intenso por dentro, intenso tão dentro, que não percebe o outro aí do lado a não ser no que nele homenageia você? Eu queria escrever agora, mas não isso aqui. Queria escrever o que tenho em algum lugar aqui dentro, mas que nunca até hoje conseguiu virar palavra. Eu queria virar palavra. Ou talvez som, cor. Um dia eu viro.

terça-feira, maio 28, 2002

Olha o vento, olha... que medo! Não por causa da tempestade, os raios até que são bonitos. Luz e ímpeto, e pouco tempo pra pensar. O vento não, é lento mesmo quando em fúria porque nele a gente vai, vai, e luta ou se rende, mas vai. E não sabe pra onde. Você também tem medo? É medonho mesmo esse tal de não saber pra onde, não ter âncora. Talvez o 'pra onde' seja bom. Quando eu era deste tamaninho imaginava que todos os lugares, paisagens nos quadros nas paredes, eram de verdade, e eu queria atravessar as tintas e chegar neles. Uma cabana tosca à beira de um lago brilhante, eu achava que ali era o lugar mais feliz do mundo. Mas quem é que sabe, se nunca foi lá? Tentar? Nossa, dá até um frio na barriga... Talvez seja ruim, feito uma caverna. Como dentro da gente às vezes, que a gente até tem medo de olhar pra dentro. Olha o vento, olha... tão fresco, tão livre. E se talvez eu soltasse só um pouquinho, se eu voar só um pouquinho... você segura a minha mão?

segunda-feira, maio 27, 2002

Dentro da gente é criança, mesmo. É assim, um inquieto esperneante, medos e vontades e nenhum controle. O controle é fora, rondas e grades, cadeias e bolas de ferro bem grandes. Nem sempre adianta. Tem mulher-menina de chantagem e veredito, um abismo assim profundo que captura e amedronta, e cobre de fogo e água, grito e choro. Tem homem-menino de fuga e violência, feito deserto de areia fervente que de repente gela, e migra e invade e assola de febre e frio, silêncio e fúria.
Dentro da gente é assim, confuso, e só por muito ser é que se domina a alma. Porque dominada a criança percebe e acalma um pouco. E nesse tempo curto, na paz do acalmar, é que se pode olhar em volta e beber devagar o vazio do grito, choro, silêncio ou fúria. Pode-se entender. Ouvir mais do que o próprio som, sentir mais do que a própria pele. Talvez quando outra pele se dê a sentir. De verdade. Será verdade? Tomara que sim.

quinta-feira, maio 23, 2002

só__sei
que__você
me__faz__bem
e__estranhamente
a_c_h_o__q_u_e__j_á__s_e_i
o___s__u__f__i__c__i__e__n__t__e

quarta-feira, maio 22, 2002

três

Tentei migalhas de pão. Trago sempre muitas, quase pesam, e nunca soube para quê. De cada momento fato sentimento imagem sensação uma migalha memória. Banquete ínfimo insignificante, quente de mim, e vieram. Vi-lhes claras as cores, finalmente. Devoravam-me as migalhas, fundiam-se a elas. Eram um agora curto, mas vivo, luzes de beber, e bebi. Mas foi só o agora.

Porque não a água? Sim, a água outra vez. A mesma que de lago gélido a mar revolto a chuva morna a cachoeira incontida foi sempre o mesmo eu. Signo do fogo? Cadê o fogo? A água alimenta.

terça-feira, maio 21, 2002

dois

Sim, eram como idéias, os peixes. Quis falar-lhes em silêncio reverente ao silêncio solene de que são feitos, para que me ouvissem, respondessem. Perguntei-lhes qual de meus ardis, puerilidades de alma que se recusa a saber-se grande, seria capaz de detê-los ao menos por instantes, para que os conhecesse. Silêncio. Idéias são assim, também, silenciosas. Mas falam.

Fosse lago, mar, chuva ou cachoeira, era sempre a água. Desde a primeira, aquela de onde nunca nascera por completo. Sentia-se assim, às vezes, bicho meio-nascido. Girinozinho minúsculo, propriedade da água ainda, que espera o dia de deixá-la embora não o deseje.

segunda-feira, maio 20, 2002

PES-CAR v.t.d. 1.Apanhar na água (peixes e outros animais que aí vivem). 2.Colher da água (pérolas). 3.Averiguar, investigar.

um

Pareciam luzes dentro d'água. Móveis belos arredios, tão mais ágeis quanto mais os desejava, segundo a segundo... primeiro de tudo porque eram parecidos com idéias. E exibiam-se, e sumiam no escuro nem tão fundo, mas muito secreto, com tal leviandade que despertavam raiva quase tanta quanto era o amor.

"mas sabe, pescar é muito mais fácil pra mim do que vender o peixe... na verdade os peixes pulam em cima de mim."
. Naquele momento a frase não pareceu arrogante. Nem depois. Sabia-se aquário superpopuloso, em colapso, e peixes que saltam ferozes. No começo eles se perdiam, debatendo-se no chão em seco desperdício. Depois aprendera a conservá-los, intrigantemente vivos, e brilhavam à vista, exibidos. Contrastavam peixes e água com o fogo invisível dentro, longe, grande, soberano. Fogo de queimar e não consumir.

sexta-feira, maio 17, 2002

O porquê eu não sei, não senhor. Só perguntando pra ela. Não, não sei quem é, também. Diz ela que nem ela mesma sabe. Me deu essas moedas aqui e pediu pra trazer isso e dizer umas coisas pro senhor. Aí eu perguntei porque é que ela não escrevia uma carta, ela disse que carta é pra ser respondida, o que ela queria agora era só dizer. Aí eu perguntei porque é que não vinha ela mesma falar, e ela disse que eu não tinha nada com isso. Não ri não, moço. É sério. Acho que a dona é maluca, mas eu disse pra ela que vinha, e palavra de homem não volta atrás, né? Primeiro ela falou de um tal de esconderijo que o senhor deu pra ela no temporal. Engraçado, faz tanto tempo que não chove. Quando ela falou isso lembrei daquela casa mal-assombrada do filme, que chove só em cima dela. Vai ver foi uma chuva assim, só dela, né? Dessas que a pessoa não espera, e pode até ficar doente. Deve ser bom isso de não deixar alguém ficar doente. Ela mandou pro senhor essa florzinha aqui, viva, plantada na terra. Disse que o senhor ia entender isso. Isso o quê, hein? Tá bom, tá bom, eu termino de contar. Ela falou também que ainda não levou o senhor na casa dela toda por causa da bagunça, mas o senhor é bem-vindo, e um dia que nem tá muito longe a casa vai estar arrumadinha pro senhor conhecer. Disse que o senhor levou um sorriso pra ela, e mandou um beijo. Só isso, tchauzinho... Engraçado, o olho dela brilhou enquanto falava igualzinho o seu tá brilhando agora!

quinta-feira, maio 16, 2002

Lembro da sala clara. Muito, mesmo. Branca do teto ao chão, bem montada, e grande, imensa. Devia haver centenas de alunos ali, mas todos em ordem, interessados, participantes. Adultos como os do meu dia-a-dia. Aula noturna. Eu estava ligeiramente desconfortável porque não ocupava o nicho típico do professor, aquele de mesagrande/cadeira/quadronegro/latadelixo. Não, eram mesinhas de alunos por todos os lados, e me observavam atentos. Eu falava. Sala muito clara, muito tranquila. Tudo sob controle. Um deles se levanta e começa a falar. Ele tem roupas extravagantes, em cores que se destacam no meio dos outros, parece divertido. Interrompe a aula, ri, fala alto, se diverte. Olha nos meus olhos o tempo todo. Sorriso duro, meio revoltado. Mas quase simpático. Meu Deus, do que ele falava? Não lembro das palavras. Agora é como se eu não as escutasse. Tento contornar a situação, sou dura com ele. Pareço forte, forte, que mentira. Ele grita agora, ainda sorrindo. Está me acusando de algo, não sei do quê. Não lembro, não sei se era mentira ou verdade, mas sei que me desesperava. Ele grita e ri. Ele é adulto, mas pequeno. Contrasta com meu porte grande. Mas está no comando agora. Os alunos observam ainda em silêncio, expressões de espanto. Eu o ergo no ar e o levo até fora da sala. É tão difícil. Conto tudo à diretora entre soluços, ele sorri pra mim. Grito muitas vezes "Não volte!". Volto à sala, murmúrios, comentários de preocupação, sento numa das cadeiras dos alunos. Baixo a cabeça e choro. Acho que pela primeira vez na vida chorei dormindo, lágrimas escorrendo até o travesseiro. Acordei com meus próprios soluços pouco mais de uma hora depois de ter adormecido.

quarta-feira, maio 15, 2002

IN-TROS-PEC-ÇÃO sf Exame que alguém faz dos próprios sentimentos ou pensamentos.

Estranho... lá fora a cascata é barulho e movimento. Ensurdecedora, frenética. Aqui é murmúrio contínuo, quase suave. E escuro. Curioso, as águas móveis não são transparentes. É fresco também. Como se entra aqui? Por que se entra? Pode-se sair? Prefiro ficar, parece seguro. Ninguém sabe das cavernas por trás das grandes quedas d'água. Ninguém sabe. Não, não podem saber. Que aterrorizante descobrir esses buracos disformes por sob águas tão fortes, tão retas. Lá fora a cascata é domínio. Ela não tem dúvidas, não hesita, não pede abrigo, não cede, não pára. A vida não pára. Aqui é sossego. Não para sempre, que a hora de sair sempre chega, pressão insustentável de vida em queda livre. Livre é o que há de bom na queda. O inevitável. Lá fora a cascata é medo e desafio. Vou descansar aqui agora. Não perturbe.

terça-feira, maio 14, 2002

"A chuva começaria forte, como se houvesse esperado calmamente o momento certo. Jeito de tocaia, mesmo, espreitando um nosso deslize, talvez. Cairia com estrondo, feito uma blitz, buscando infrações dignas de multa. Deve ser fria a água de uma chuva assim. Não faz mal." A vontade de chorar apertava, produzindo no estômago o efeito de uma torção, quase náusea. É, o corpo tem dessas coisas, expulsar o que faz mal. Mas não adiantava agora porque o que fazia mal era um não-ter. Desejava aprisionar em vez de expulsar. Impossível. Pelo não-ter só se pode mesmo chorar.
"Riríamos juntos da nossa doce rebeldia. Crianças capazes de nadar na própria liberdade. Você abriria os braços, jogando a cabeça para trás, eu de fascínio me sentindo chuva." Não choraria agora, definitivamente. Chorar agora equivalia a entender a dor como derrota. Respirou fundo um ar amargo, limpou duas lágrimas fugitivas e pôs-se de novo a pensar no ciclo das águas, enquanto olhava através da janela a chuva que se recusava a cair.

segunda-feira, maio 13, 2002

Era uma guerreira.
Olhava a fonte e o abismo diante dela.
O abismo era largo e fundo.
A fonte cristalina.
Ela tinha uma sede profunda e antiga.
Sentiu as pernas fortes e ágeis.
O abismo era largo e fundo.
O cristal da fonte.
Primeiro pensou, depois parou de pensar.
Tomou uma distância prudente. A fonte brilhava.
Correu, correu.
Saltou.
O fundo do abismo.
Silêncio.
Hoje é dia de tratar das feridas.
Amanhã, de escalar o abismo.
De que lado?

quarta-feira, maio 08, 2002

Estranho essa coisa de mãe. Essa ligação entre o filho, o útero e a eternidade. Isso de saber pra sempre que a gente não é só a gente. É mais alguém. É de mais alguém. É por mais alguém, mesmo sem querer. Mesmo sem 'o alguém' querer. Estranho isso de sentir dor por outra pessoa, e de ter tanta raiva quando ela sofre. Porque é que os filhos têm que sair da barriga das mães? Lá dentro é tão seguro... Tão pleno o poder de proteger.
Mas é assim, a vida. Eles saem, e o pior, crescem. E mais do que criar pessoinhas 'pro mundo', como diziam as nossas avós, é tão incômodo esse indispensável (impensável?) de criá-los pra si mesmos. Pra que cresçam, existam, e - pior de tudo - sofram por si mesmos. "Mas mãe, eu é que tô com problemas, porque é que você tá chorando?". Todas as mães são assim, filha. Malucas de amor, pra que vocês, coisinhas imensamente intensas que a gente põe pra fora da gente todo dia - é, sim, vocês sem saber insistem em estar aqui dentro mesmo quando grandes - comecem sua aventura na selva da vida bem protegidinhos. A natureza é sábia, nós é que não somos.
Mas o saldo final é positivo, sabe? E se posso me dar ao luxo de ser piegas, como pede o assunto, tem um monte de paraísos nesse padecer. Gargalhadas dobradas, desenhos borrados, segredos - ah, eu sempre soube que seriam tão preciosos - contados sob juramento de fidelidade eterna. Bombons divididos, bilhetinhos e aquele ar de quem já saiu há tanto tempo da barriga que daqui a pouco nem vai precisar mais ficar perto dela. Não é que a coisinha cresceu, e deu certo? Ah, filhos... que tal dar colo de presente de dia das mães?

terça-feira, maio 07, 2002

Não sabia de onde era, e isso não era surpresa. Era de tão longe, um longe que não dava pra dizer onde ficava. Longe de dentro. Talvez seja por isso que tem gente que a gente chama de vasta. Gente bonita de ver, mas que se arrisca toda hora a se perder lá dentro delas, de tantos caminhos. Então não sabia, e pior, parece que queria saber. Olhava pra si mesmo procurando umas respostas que ninguém tinha, como se a falta delas fosse de se condenar.
Sabia um monte de coisas que não era, e um pouco do que era também. Só não sabia que não ser é uma parte de ser. Que ser é ser feito de vazios.Sabia isso de ser humano-necessitado, e esquecia que humano é o mesmo que necessitado. E isso doía.
Por sorte existia o tempo. Sempre existe. E era muito. Muito mais futuro que passado, e o futuro era todo feito de respostas. Assim vivia mais perto delas a cada dia, ainda que nunca as alcançasse. E o nunca nem demoraria tanto, pra quem vinha de tão longe...

domingo, maio 05, 2002

Trezentosequarentaeseis... trezentosequarentaesete... trezentosequarentaeoito... que horas são?... trezentosecinquenta... Se ao menos passar das quatro, cinco e meia levanto mesmo... trezentosecinquentaetrês... Raio de torneira, raio de noite que não acaba...
Esperar é feito guardar um segredo. Olha-se para aquelas coisinhas débeis dentro da alma, meio disformes e tão numerosas, que se fazem chamar sonhos, e é quase engraçado... Cada um deles é tanto, e vive tanto. Pedaços de eternidade encravados numa vida onde não poderiam caber. Como algo tão delicado pode ter poder tão grande?
E o mundo nem aí, gira e pronto. A vida segue... trezentosecinquentaaenove... Tem jeito não, melhor desistir que enlouquecer, mais um pouquinho viraria caso de hospício.
Mesmo a palavra esperança tem um quê de aflição. Sim, porque é esperança no invisível e muito, muito imaginado. Naquilo que não se tem. Parece então que só se espera o impossível. Depois da esperança a realidade vem sempre faltando um pedaço para ser o sonho ( talvez ela - a esperança - vire verdade incompleta pra que outra esperança possa vir a existir - deve ser assim que elas se reproduzem). E amanhã é afinal o melhor de todos os dias. Esse, que nunca chega.
Quatro em ponto. Sorria desses acasos que faziam o tal do acaso parecer ter mais noção de hora e lugar que a gente mesmo. Sorria triste porque ficava triste na insônia, sempre. Rendia pouco, errava, odiava errar quase tanto quanto odiava esperar. .
Esperar é parecido com olhar através de paredes de chumbo. Enxergar por querer, o querer. Criar do invisível, levar imagens e histórias na bagagem, que na falta de vida viva o sonho. O agora então vai ficando assim embaçado, e quase some, asfixiado pela espera.

sábado, maio 04, 2002

Conquistar não é tão difícil como parece, sabe? Tá vendo aquela garrafinha ali pendurada? Água com açúcar. Atrai beija-flores. É assim que se os conquista. É preciso algo de fluido e doce, disponível e perceptível. Conquista-se assim, mesmo que por momentos. Todo mundo tem águas e açúcares escondidos para as conquistas. Olha, olha.. lá vem ele. Viu que lindo? Outro dia um desses se enfiou janela adentro e perdeu o rumo. Quase morre sem conseguir achar a saída. Perdeu duas peninhas, agora é com elas que eu marco aquele livro de poesias. Lembra, aquele que eu queria ler pra você? Não deu tempo, você tem sempre tanta pressa... Bobagem, nem todo mundo gosta de poesia. Foi embora, amanhã ele volta. Conquistar é assim, simples. Não, não vá ainda. É cedo. Vem outro daqui a pouco, mais bonito. Só deixam de vir se acabar a água com açúcar. Acaba, às vezes. Manter é mais difícil que conquistar. Tá bom, tá bom... não vou te prender mais. Amanhã virão outros pássaros. Sempre virão. Então te espero.

sexta-feira, maio 03, 2002

Pousa de novo na minha janela. Já não se pode saber se de novo ou outro. É que os pássaros, embora não sejam de forma alguma todos iguais uns aos outros, são todos tão iguais ao que desejamos num pássaro que somos incapazes de distingui-los. Pousa, e lá está, sem nada fazer além de ser e estar.

É livre, de uma liberdade transparente, esvoaçante, que eu não vejo mas sei que é ali na forma de uma aura lilás. Eu a quero azul, mas é lilás porque os pássaros são livres, aura feita de liberdade e canto. Sinto um aperto bom no peito, como se pousasse em mim e não na janela. Beijo-pássaro. Quente, móvel. Tão pequeno e inquieto que tenho medo. Mas sei que a janela também sou eu, então se em mim queima essa vontade repentina de que ele esteja ali para sempre, também o sente a janela, é possível. E caso ela o tente aprisionar? E tentando, o fira, ou não o ferindo – pior – o afugente? Censuro-me com força por ter pensado ser pior perde-lo que feri-lo. Passa. Temo o ímpeto de minha janela, mas nada posso fazer. Espero.

Dou-lhe um nome, rápido, como na pressa de torna-lo ao menos um pouco meu. É tarde fresca no Alto da Boa Vista. Dindi, penso, sem-jeito. Não contarei a ninguém, mas será Dindi, e pronto. O engraçado é que eu jamais havia cogitado dar nome a um pássaro de gaiola. "Se um dia você for embora me leva contigo, Dindi...". Nunca dei nome a pássaro prisioneiro porque sei que todo pássaro é feito de vôo e de ir embora. Não cabem em gaiolas. Nelas, não são pássaros. Olho através da janela, e de Dindi, e lá está a mata mágica do Rio de Janeiro. Ainda está lá, solene, como que infinita de tanta fragilidade, encravada no meio da cidade como um selo vivo. A floresta redime a cidade. Sorrio de orgulho do meu lugar.

‘Dindi é nome de mata!’, ouvi indignada um amigo rir, certa vez. Entendo agora. Imagino como quem lembra... O maestro olhando a mata, apaixonado, e com gestos invisíveis tornando suspiro em música. Havia mais matas, antes, e mais paixão. Mais pássaros, mais suspiros, mais música...

Agora ele canta.

Não, não estou sonhando. O pássaro olha para mim e canta. Fervo de tanto ser, e dentro é como que uma dor doce que sorri e cresce, e tenho medo de não ser suficiente para ela. Tambores soam no peito, mas é difícil respirar lento e leve o suficiente para ouvi-los. O olhar vibrando de coragem, tentando aprendê-lo em formas e cores. Talvez ele seja um sabiá – nada sei de pássaros, ou de vôos, fui sempre do chão – ou um coleiro, ou um anjo. Sei que canta sem o medo que preciso que ele tenha, para que não veja o medo em mim. Faz sua serenata não solicitada, decidido e indiferente. E me olha ágil, firme, como que pedindo resposta.

Não sei cantar de pássaro, e ele me olha. Ah, eu cantaria, sim, o beijo-pássaro. Cantaria coragem e voz. Vôo forte e pouso leve, leve. A mata-casa que vai sumindo, embora uma Floresta da Tijuca tão enorme quanto o quadrado da minha janela se mostre agora, exibida. E é tudo que vejo de não-meu além do castanho Dindi.

Não-meu. Eu sei, mas finjo que não.

Sendo feito de ir embora, não foi. Não ainda. Se for, não haverá ‘me leva contigo’, eu sei. E espero que não vá. Não agora. Espero que espere. Ao menos até que eu o escreva inteiro, de todas as parcas formas que compõem o que afinal é a minha forma de cantar.