sábado, novembro 02, 2002

É assim o outro. Esse escuro vasto, intensíssimo. Impenetrável. Sim, é verdade que mergulhamos nele às vezes, mas parecemos tão à parte ao mesmo tempo. Quem pode ver o outro por dentro? Quem pode, sem violá-lo? Quem pode entender o outro? É assim o outro, ininteligível. É assim por causa da nossa pouca força, do nosso pouco ser. Nessa fragilidade extrema e costumeira o ininteligível é sinônimo de inalcançável, de intocável. Tão perto, tão sedutoramente perto. Porque é que o outro seduz tanto, se é tão árduo? Mas seduz, e fascina, e assusta, e atrai, e esgota, e renova. Mata, revigora. E renascemos ainda menores, ainda mais longe, e talvez por isso mesmo ainda sob maior ânsia de o tocar, de o ter. De o ser. Tolice, o outro será sempre outro. Impossível tê-lo, vivê-lo. É assim o outro, esse fazedor de impossibilidades. Que terrível saber o que não somos e o que não podemos. Que terrível não ser, não poder. O defeito do outro é não ser eu.

sexta-feira, outubro 25, 2002

Ele vem, finalmente. Levanta rápida, agitada, coração quente de novo. Há tanto o que fazer. Abre as janelas ao vento e ao Sol. O Sol ainda está lá fora, incrível. Limpa, arruma, que vergonha essa bagunça. Ele vem logo, o tempo é tão pouco. O tempo é sempre pouco quando não é tempo de espera. Ele vem talvez cansado, é preciso maciez e perfume. A cama, aconchego. Ter onde ser. Incenso, tem? Ele vem, acorda logo. Ele vem talvez amargo, é preciso um doce. Aquele gostoso, que pede mais. Mais gostoso hoje, você é tão linda. Ele sempre diz linda, lembra. Linda...linda... um vestido novo? Não, aquele da última vez. Sabia última, mas pra quê falar? Perfume, o cabelo assim, como era mesmo? If I had a song that I could sing for you I'd sing a song to make you feel this way. E a primeira estrela que vier para enfeitar a noite do meu bem. Que coisa antiga, meu bem. Meu bem, ele ria. Tão bonito ele rindo. Chega de sonhar, ele vem. Música, tem? Uma bem bonita, e suave, que há tanto que dizer. Falar de monstros e dragões antigos, de campos floridos, pores-do-sol vermelhos e dourados. De nuvens lentas, chuvas e arcos-íris. Ele escolhe. Talvez o silêncio. Tão bonito, silêncio de estar junto. Ele vem talvez ferido, sabe. Não tem medo, nem pena, ele é tão grande. Tem cuidado, remédio, será que adianta?Pensa que não, sente que sim. É o que importa. Não esquece de abrir a porta, daqui a pouco ele vem.

quarta-feira, outubro 16, 2002

Eu não devia ter escrito isso.
Daqui a pouco eu deito, e choro. Agora não, é cedo ainda. Daqui a pouco a luz da rua, amarela e indiferente, entra em casa, quarto e olhos semicerrados - Não estarão fechados porque dentro de mim é tão abafado, um sufoco - então eu posso chorar.
A luz semientrando nos olhos daqui a pouco forma uns desenhos dourados nos cílios. Lembra que eu criança dizia que eram árvores? De ouro as árvores, as mais perfeitas árvores de natal. Aí chega a lágrima e a luz se desmancha em cores, um arco-íris só meu. Ninguém mais vai saber. Ninguém mais vai saber.
Nem da dor. Nem do fracasso. Nem do pesadelo. Nem da morte. Nem da vida. Nem da miséria. Nem do acaso. Nem da sorte. Nem do desejo. Nem do não.
Desistir é o pior de todos os pecados.
Daqui a pouco eu deito e o mundo fica tão grande, tão imenso que pesa, sufoca e não posso respirar. Levanto e choro. A música longe parece demasiadamente alegre, e me fere. Quando isso tudo passar - e passa sempre - vai parecer tão bobo. Aí eu acostumo. Aí é como se fosse assim mesmo. É, a vida é assim mesmo. Ainda bem que eu tenho as árvores de ouro.

terça-feira, outubro 15, 2002

Talvez tenha sido há tempos. Muitos anos. Talvez a noite passada. Penso que não faz diferença porque há histórias que não têm começo nem final. Outras só têm final. O lago brilhava anoitecendo, refletindo uma lua em forma de sorriso. Lembro que pensei em como era bom a lua sorrir, independente de quanto eu e você pudéssemos chorar.
-Você é sem máscaras...
-Não sou sem mascaras todo o tempo.
-Usa máscaras pra mim, às vezes?
-Não. Você também não usa máscaras comigo, usa?
Não usávamos, e era lindo e também doía muito. Não sabíamos ainda que era dor, inocentes demais. Sabíamos um pouco, sem muita intensidade pra que não doesse mais do que pudéssemos agüentar. Na nossa opinião agüentávamos tão pouco.
- Se você fosse mergulhar, e tivesse vários lagos disponíveis...
Você riu meio de repente, como uma luz no meio da noite, e brincou:
- Eu mergulharia no menos gelado.
Veio o vento, e primeiro eu gostava. Meus cabelos se agitavam, daquele jeito que você achava bonito.
- E quanto à visão que pudesse ter ou não do fundo? – eu insistia em falar sério, sempre. Percebi seu riso arrefecendo ao olhar o fundo, invisível de noite apesar das águas cristalinas, que já se agitavam também ao vento fresco de quase tempestade.
- Se o fundo estivesse cheio de caranguejos, eu ia preferir mergulhar no que dá pra ver menos...e muitas pessoas são assim. Preferem que os outros usem máscaras, porque pra eles é mais confortável não ver os caranguejos.
Agora era eu quem ria, meio divertida, meio aflita, o barco balançando:
- Mesmo que o fundo esteja cheio de jacarés?
Tínhamos um pouco de medo agora, e era muita angústia aquela preocupação de um com o outro, e não consigo mesmo. Sufocávamos de amor e cuidado, não chorávamos por medo de fazer chorar, mas tínhamos tanta verdade que de nada adiantava. Os remos não comandavam o barco, brigavam contra as suas mãos. Mesmo assim sua voz era firme.
- Às vezes a gente encontra jacarés por aí também. Nesse caso, é melhor ver logo.
Um remo afundou. Olhei bem nos seus olhos investigando o pânico.
- Se você mergulhar num lago turvo, e depois num lago límpido, vai perceber q no lago turvo o mergulho não foi tão delicioso porque você estava tenso com medo dos jacarés – eu tinha muito medo, mas estranhamente sabia que você encontraria um jeito - você me dá um mergulho bom porque sei onde estão os caranguejos...
- Mas às vezes ver demais o fundo pode não ser confortável. Ei, eu não tenho caranguejos! Rimos um riso meio ansioso. Seus braços doíam na luta com o único remo, que acabou inexplicavelmente partido em dois. Eu me equilibrava com esforço, arregalava os olhos à procura dos seus.
- Depende do mergulhador – eu era medo e riso, tremia e confiava.
- Não sou um bom mergulhador, as pessoas me assustam. Você é uma boa mergulhadora.
O vento se multiplicava em mil jatos. Segurávamos firme, sem falar por um tempo que pareceu que jamais terminaria. Meu maior medo era que você desistisse, eu continuava e sabia que não estava fazendo mais do que manter a sua luta. Só sua.
- Então porque é que mergulha em mim?
- Porque você me assusta, mas eu não consigo fugir de você – agora seus olhos me olhavam fundo, já não importava a tempestade, o medo havia sumido - acontece as vezes. Até tento fugir, mas não adianta...
- Como das águas onde mora a sereia?
- Não sei da historia da sereia – rimos, o vento acalmava, estávamos à deriva.
- Precisa conversar mais com gente velha...
- Então espera aí que vou procurar uma velha – nos abraçamos de um jeito único, perdidos um no outro, e esperamos. A noite foi longa, o vento vinha e nos assombrava, assobios de fantasmas da infância. Choramos em silêncio, tentávamos parecer seguros. Não ia durar para sempre. Não durou. Disso tudo a lembrança mais forte é a de que estivemos juntos. Sempre.

domingo, setembro 08, 2002

Do rádio vinha o som da voz da cantora: "Deixa eu tocar sua alma, deixa eu ver sua alma..." e ele imaginava - doce presunção dos ouvintes e leitores apaixonados - se alguém mais além dele mesmo entendia aquilo. Já sabia que o que vale nas pessoas é a alma, mas é também a parte mais difícil de tocar. Ver é pra olhos treinados, mas tocar é pra mãos de sorte.
No aquário ao lado do rádio os peixinhos pareciam indiferentes à musica, às almas (peixe tem alma?) e a todas as suas reflexões. É isso - pensou - as almas são como peixes. Exibidos e fugidios. Sempre se mostram por querer, mas quase nunca se deixam tocar. Talvez tocar, mas não reter. Talvez reter, mas por encanto, nunca por força. Por força só se as fere.
Amar alguém é também entender o escorregadio de sua alma-peixe. Olhar sem tocar, tocar sem reter, reter sem força por um encanto que nem sabemos assim tão encantador. É tentar e ver. Expor-se ao vexame da fuga do peixe, aquele vexatório do peixe escorregado-agarrado-desabado-reagarrado-reescorregado-perdido-chorado, que atemoriza cento e um por cento dos mortais. É ter coragem de tentar. Ter coragem de tocar, ou ao menos olhar. Em qualquer caso, olhar, ainda que sem a menor esperança de possuir.

quarta-feira, setembro 04, 2002

Eram asas, sem dúvida. Asas de anjo? Toda asa grande lhes parecia de anjo. É que não deve haver nada maior do que um anjo, imaginavam. Tinham asas enormes, que viam imóveis.

Serenidade imensa e despropositada assim era ainda mais despropositada quando rugiam feito leões. Talvez algum dia um anjo tenha desejado ser leão, então rugiu. Era desse jeito que se entendiam.

Faces humanas, e tinham olhos também. Serenidade. Ainda que fossem capazes de se desesperar, seria sereno o desespero, decerto. Eram assim os olhos, e grandes, e claros. E se olhavam na alma com tamanha força que a alma sentia vergonha de ter um corpo.

Interrogativos os olhos, inquisidores de si e dos outros. Belos. Apavorantes no não ter respostas que lhes assolava. Sedutores no querer respostas, e as queriam tanto.

No fundo amavam as perguntas também. E eram tantas que pareciam feitos delas. Elas os alimentavam.

Garras e olhos, rugido e asas, eram como um fim chegando. Talvez demorasse. Era como se ao fim a última resposta os fosse libertar. Seguiriam então destinos únicos. Um-só-em-si. Um-cada-um. Mas agora estavam juntos.

Estavam juntos, inegável. Talvez parados frente a frente, ou caminhando lado a lado. Talvez seguindo... não, ninguém conduzia. Talvez atraindo. O fato é que estavam juntos, e por enquanto era quase claro o que diziam garras e olhos, rugido e asas: "Decifra-me ou te devoro.".

sexta-feira, agosto 16, 2002

"Se eu fosse cavalo só comia flor.". Manhãzinha preguiçosa, de dentro do carro pouco interessava ver além do estritamente necessário. Mas era fato, lá estava o cavalo, plácido e indiferente, fazendo sua refeição matinal: capim.
"Por quê, filha?", questionei entre risadas, ainda mais de prazer que de achar graça. "Capim é muito feio". Felizes seríamos, filhinha, tão felizes, se pudéssemos ter somente o belo como alimento. Mas na hora não era nisso que eu pensava. Não tinha importância ali se falávamos de cavalo, menina, unicórnio ou duende. Não tinha importância se comer era para o corpo, os olhos ou a alma. Importava só o espasmo de liberdade incontrolável que nos permite aos dez anos escolher o destino de gente, bicho e planta.
Estranho isso do inconformismo. Sem perceber eu naquela hora pensava nas escolhas que eu, adulta incurável, já não tinha. Olhava a onda de estupefação na qual eu virava cambalhotas por causa daquele absurdozinho. Onde já se viu cavalo escolhendo comida, mesmo que cavalo-marionete da imaginação de criança? Onde já se viu querer só o bonito, se nessa 'adulteza' em que todos acabamos caindo o bonito é uma conquista tão árdua? Tornei-me de novo fã daquela garotinha, de todas as garotinhas, inclusive daquela que ainda sou aqui dentro, em algum lugar.
Quando criança eu li sobre o moço que queria consertar o mundo, e pensou as abóboras, grandes, majestosas, lá no alto da árvore no lugar das insignificantes jabuticabas. Era a mesma coisa agora, e para muito além do absurdo eu entendia que só é capaz de ousadia assim quem é muito, muito livre.
Depois que a gente põe uma pessoinha assim no mundo fica meio escravo genético dela. Parece que cada célula da gente se exalta, entristece, assusta, refestela nela, conforme o que salte dela na nossa direção. Por causa disso é que naquela hora eu ria inteira olhando o cavalo que, coitado, só sabia comer capim; e olhando a menina que já sabia - e agora me ensinava - que fosse imaginando, suspirando, querendo, fosse como fosse, ainda seria possível sentir nessa vida um gostinho de flor.

terça-feira, julho 02, 2002

Ela continua lá, animal altivo e imóvel olhando para cima. Só nuvens. Ela já entendeu, mas finge que não. Elas não irão embora. O vento não virá e não abrirá as nuvens, não abrirá nada. Fecharam-se feito conchas.

Só se abre uma concha
à força matando a ostra,
Deus me livre.
Deus me livre de violar você,
meu amor.


Ela pensa. Dói. Se ao menos pudesse tocar as nuvens, movê-las. A lua está ali logo atrás delas, tão perto. Quer gritar. Só os machos uivam para a lua, por isso têm tanta força na voz. Só os machos caçam, por isso têm tanta coragem e medo. O halo de luz está lá visível através da concha, digo, das nuvens. E estará lá ainda, mesmo que as nuvens se adensem muito, mesmo que a tempestade venha, mesmo que ela não sobreviva. Sobreviverá, é certo. Falta pouco para amanhecer.

Amanhecendo a lua aparece
do outro lado do mundo.
As nuvens não vão junto.
Felizes aquelas que estão lá.
Podem tentar, ao menos.


Quando o sol chegar ele também estará oculto, e fará frio. Ela não morrerá de frio. Ficará quietinha e esperará. De noite tem a lua de novo. Talvez com menos nuvens agora.

segunda-feira, julho 01, 2002

- Não é babuíno então. É mandril.

Fausto tagarela do outro lado da linha e eu à distância examino Dirce, que não percebe. Castanha e macia, os pêlos sedosos que clareiam em torno do nariz vermelho. A cara é de um colorido suave - se fosse macho seria berrante, ainda bem - igual ao da bunda. Ela é tão bonita. As fêmeas de mandril menstruam feito as mulheres e não têm tempo certo pra acasalar. Que mulher. Mulher?

- Mas não é a mesma coisa?

Ela deveria ser bem menor, pelo que Fausto diz. Mas é grande, quase do meu tamanho. Ágil, doce, forte.

- Não. É a mesma família, mas outro gênero. Ô Cláudio, eu ouvi direito? Você tá dizendo que tem um mandril em casa?

- Eu? Não, imagina. Tenho que desligar agora. Depois a gente se fala.

Dirce continua a examinar os CDs, o olhar doce na direção da cozinha de vez em quando.

- Quer ajuda, amor?

Amor. Amor. Será amor? Ela é perfeita, é verdade. Tudo o que eu havia sonhado, menos um detalhe. Não é humana. Mas fala. Escreve, lê - romances - e adora música. Passamos nossos dias (desde quando?) respirando cumplicidade e sexo. Insaciáveis, ilimitados. Felizes. É perfeito. Não. Tudo seria perfeito se não fosse esse pânico que me toma quando penso em falar de Dirce para qualquer pessoa, mesmo as mais próximas. Aquele remorso, aquela culpa quando ela chora baixinho ao se esconder na área de serviço se chega uma visita. Se ela - raro, toma cuidado extremo - faz algum barulho e a visita pergunta o choro dura mais, porque eu tenho que dizer que é o cachorro.

É obsceno. Ela é obscena e me fascina. Acho que algum sonho insólito me escapou das profundezas e materializou ali todos os meus desejos, todas as fantasias, até as mais loucas. Ninguém poderia ser mais feliz. Ela me invade e me domina feito uma droga.

Ela vem até a cozinha. Eu sabia que viria. Eu queria. Sinto suas mãos em torno do meu corpo, seu hálito em minha nuca. Será que um dia eu terei coragem? Talvez não, mas o que importa agora?

sexta-feira, junho 28, 2002

Olhava através da janela... e do ar, e dos pássaros, e árvores, e nuvens, e via. Via nítido, embora não compreendesse. A sensação era de iminência. Riu. Aquilo era ridículo. Iminência não era sensação que se tivesse. Mas como chamar aquele suspiro, aquela vigília? Que nome dar a isso que se parece com o que sente o cais quando o barco se aproxima?
Ouvira falar uma vez de um barco não sei onde que chegou com tanta força que quebrou o cais, pensou então que ser cais assim passivo e imóvel era muito doído. Quando se é cais tanto o partir quanto o chegar do outro são intocáveis. Não se pede e não se nega a chegada. Não se apressa e não se adia a partida. Então é dor o tempo todo, dores diversas. A de chegar é medo, a de não chegar é solidão. A de não partir é culpa, a de partir é saudade. De tanto não pedir e não negar nada acabou aceitando as dores todas.
Desejara uma vez ser barco em vez de cais. Desejara na sombra e no silêncio da maré baixa. Seria o mais belo e preciso dos barcos, que chega e vai embora somente no tempo certo. Um barco como nenhum outro. Temeu e preferiu esquecer. Sentiu alívio pela sombra, pelo silêncio da maré baixa, e olhou de novo através da janela, do ar, dos pássaros...

quinta-feira, junho 27, 2002

A primeira metáfora havia sido do Drummond. Treze, quatorze anos, talvez. Atravessara-lhe de uma só vez.

"Como pode existir, pensou consigo..."

(era o marciano que pensava, o que encontrou o Drummond na rua)


"...um ser que no existir põe tamanha anulação de existência?"


A anulação da existência ficou ali entalada, talvez para sempre. Talvez porque até ali - e não tinha ainda esse pensamento pensado, só sentido - existir fosse a própria anulação, uma vez que era um existir passivo e então parecia sinônimo de esperar.
Esperar.
Coisas e pessoas, momentos, iniciativas, coragens. Esperar. O fim do dia, o fim da semana, o fim do mês, o fim do ano... O fim.
Esperar o tempo certo. 'Tempo' e 'certo' não combinam se o assunto é vida. Nada mais incerto que o tempo.
Odiou o marciano e o Drummond.


Não seria a única, esta. Viriam outras. Foi-se tornando lenta e progressivamente mais vulnerável a elas. Até a escravidão, quase consciente, quase voluntária. Persiste ainda a anulação da existência atravessada lá dentro. Talvez ainda hoje seja este o motor de todas as outras metáforas. Anular a anulação.
Falar, ouvir, rir, chorar, correr, atirar-se, morrer, acabar, recomeçar. Fazer certo o mais incerto dos tempos - agora. Amar o marciano e o Drummond.
Existir, ou ao menos tentar.

quarta-feira, junho 26, 2002

Olhando lá em cima só nuvens. E um vento daqui a pouco que sopra não sei de onde não sei para onde
e

abre _ as

nuvens _ _ _ feito

cortina _ _ _ _ _ assim

para _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ lá e

para _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ cá.


A lua
no meio.
Louca.


Ela é branca e cinza, tão luminosa que parece a gente quando sorri. A nuvem não fica para sempre, mas quando ela está lá é como se nunca fosse embora. É triste a lua escondida. Olhando lá em cima é tão escuro. Daqui a pouco a luz azul. A terra azul. A água azul. A gente azul. A gente azul tem menos medo. Tem mais tempo. Tem menos limites. Olhando lá em cima é tão difícil. Aí vem o vento. Nem todo limite é para sempre.

terça-feira, junho 25, 2002

A menina procurava a palavra.
Era para dar de presente.
Uma palavrinha só, simples.
Que contasse a menina...
...como ela não sabia que era.
A menina não a achava entre as suas.
Umas sumiram, outras envelheceram.
Estranho menina de palavras velhas.
A menina queria a palavra.
Uma que tivesse muita verdade.
Mas a verdade dói tanto.
Então ela esperou muda.
(pausa para o silêncio da menina)
Desejou a palavra transparente.
Lisinha assim polida e sonora.
Difícil polir com mãos trêmulas.
Elas saíam cortantes, algumas.
'Se eu conseguir, meu amor,
Te faço uma palavra nova,
De tão nova que você me faz.'

segunda-feira, junho 24, 2002

Muito bonito hein menina. Tudo errado de novo, será possível. Impensável. Inconcebível. Inaceitável. Engole o choro. Choro é chantagem, sabia não. Quer que sintam culpa é. Coisa de mulezinha. Não sabe nada também essa menina. Diz fazer desfaz. Diz erguer derruba. Diz atrair repele. Diz esquecer remói. Olha pra mim menina. Não. Olha pra você. Tudo tão simples complica. Tudo tão fácil dificulta. Fala por quê menina. Essa menina muda, vê se pode, ficasse antes. Fica muda quando quer. Quando não quer se espalha espelha explode em relâmpagos-palavras. Mereço isso menina fala. Fala. Falar que não consegue não é falar. Fala anda. Muda de novo. E agora o vaso quebrado o leite entornado o dia perdido. Menina adora perder, acha bonito, só pode. Que palavra é essa aqui que você escreveu, não existe. Tanta palavra pra escrever escolhe esta. Tantamulherpraserescolheesta. Tantamulherpraqueseresta. Tantamulheresta. Quer ser palavra, que ridículo. Não existe ser palavra. Entende que não existe a palavra. Entende que não te entendam. Não dá pra entender essa menina. Dorme menina é melhor. Ao menos dormindo você não chora.

domingo, junho 09, 2002

Parecerá dia, de tão claro. Uma dessas horas em que dia e noite se confundem por causa de algo que pode ser mistério ou surpresa. talvez por causa da lua imensa boiando lá em cima. Parecerá inalcançável, a lua. Um uivo ao longe. Não, não para a lua, mas por causa dela. Veja, é à luz da lua que se enxerga a caça, então é hora de pedir reforços. Um chamado. Plácidas, imensamente distantes, lá estarão as estrelas. Por isso é que você dirá que a felicidade é um monte de estrelas. Escuro e luz. Escuro. Luz. Escuro. E os pontos de luz que afinal são tão esparsos parecerão tão próximos, tão partes de um todo tão grande, que será como se fossem um só. É assim que a gente precisava ser feliz. Como se pontos feito agora jamais fossem estanques. Muitos agoras esparsos, e é certo vê-los todos algum dia. Então você lembrará que o céu é um só, não importa onde, e atinará que eu também estarei vendo as mesmas estrelas. Será possível estarmos assim tão perto?







sexta-feira, junho 07, 2002

Ela o olhou daquele jeito indecifrável, e a única certeza que ele tinha era a de que estarem juntos era bom. Um sorriso cansado, quase triste, mas tão transparente que ele chegou a pensar poder-lhe ver parte da alma nele. Perguntou se ele conhecia a história, ele disse que não, pediu a ela que contasse. Ele gostava de ouvi-la, achava divertido quando ela dizia que o jeito dele olhar e ouvir era o de quem abraçava. Talvez ele abraçasse a si mesmo, nela.
O olhar dela passeava devagarinho entre o horizonte lá longe e o fundo dos olhos dele. Então contou:
Havia um rei muito poderoso. Forte, altivo, valente. Desses de antigamente, que iam à frente nas batalhas, conquistavam terras, subjugavam inimigos. Nada o intimidava. Ou melhor, quase nada. Havia um espírito mau. Era assim feito um fantasma que vinha de noite, às vezes de dia, e o atormentava. O rei na sua realeza se via indigente. Via-se desvalido em plena valentia, e sofria. Havia um menino que tinha uma harpa. Então veio o menino com a sua harpa, e a música do menino espantava o espírito mau. O rei não conhecia o menino, mas percebeu que era bom tê-lo por perto. Se ele se afastava, ou silenciava, vinham de novo os tormentos, então o rei chamava de novo o menino.
Não se sabe quantos foram os sentimentos. O absurdo da pureza extrema do menino diante da tão imensa escuridão da alma do rei. Observavam atônitos, suspensos. Viam a cena, ambos, mas era um ao outro que olhavam. A história nem era assim tão bonita, mas algo lhes dizia que a deles poderia ser mais. E seria.

quarta-feira, junho 05, 2002

Remexendo o baú...
Um texto antigo e esquecido (saudades, capitão), desses que a gente nem sabe mais que escreveu... publico aqui assim, de uma entornada só, mais pra mim mesma do que 'pras visitas', que espero que me perdoem o abuso do tamanho... ;-)



Muito Estimado Capitão Ramalhete

Espero que esta venha a encontrar-te gozando da mais perfeita saúde e segurança nesta longínqüa Austrália. Na verdade nem tenho como certo que o encontrará, haja vista o desconhecido do teu paradeiro, homem de tamanha intrepidez e espírito de aventura. Valho-me unicamente da fama transoceânica que já há muito envolve o Ramalhete, digo, o teu honrado nome.
Mas o que me move no escrever é hoje mais do que unicamente a amizade, muito embora seja ela motivo suficiente, não nego. Falando em amizade, cabe ressaltar a grande estima que lhe guardamos todos os da família, já desde o tempo do meu amado e finado Feliciano até os dias de hoje. Tanto de minha parte quanto dos pequenos Abigail e Terêncio, até - e mui especialmente - minha irmã caçula e única. E é Équidna, de fato, o que me leva a te escrever estas linhas. Não, não esta équidna que já decerto viste aí, bichinho gracioso, semelhante à andorinha, de formas belas e vôo majestoso - sabes que apenas repito de cor o conhecimento absorvido de nossos serões, tão zelosamente guardados aqui no fundo da memória.
Aliás, essa noite em que conhecemos o bicho-équidna foi marcante em muito, conto logo. Sabes, Capitão, que muitos dos conhecimentos ali adquiridos me foram já de utilidade vital? Não faz muito o Terencinho - ah, como me dá trabalho este menino - veio dizendo ter visto num dos alfarrábios da biblioteca do Padre João um capítulo que dizia ser équidna "um bicho estranho, quase um porco-espinho, mas com bico e botador de ovos, que no entanto mama e amamenta". Se engano ou peraltice não sei, mas é claro que pude fazer-lhe uma preleção severa e um castigo moderado, e o episódio não nos pôde arrancar aos olhos a beleza e graça que aprendemos de tua experiente sabedoria.
Ah, sim, falava eu de Équidna. Équidna não-bicho, isso. Équidna minha irmã. Ah, não sabias ser Équidna o nome de minha irmã? Não te assombres, poucos sabem, e se não o revelamos no momento oportuno foi por cuidados meus e timidez de Équidna. Chamamo-la carinhosamente 'Dininha', desde a mais tenra infância, por conveniência, e julgávamos ter sido motivo do nome algum erro de nosso finado pai quando do batismo. Não nos parecia possível que existisse um nome assim estranho. E agora, às vésperas do trigésimo terceiro aniversário de minha irmã, surge a novidade. E pensas que foi para Équidna vergonha ter nome de bicho? - atente para o fato de que também eu o tenho, e portanto não me passaria pela cabeça caçoar de minha irmã - Pelo contrário. Exultou pelo nome não-inédito, e agora não há o que lhe ocupe mais os pensamentos do que conhecer de perto, "de vista, mão e cheiro", como diz a própria, o bicho que lhe deu o inusitado nome.
Cesso por um momento o relato das angústias familiares para uma breve reflexão. Tivéssemos eu e Équidna irmãos homens, dado o presumido gosto de papai pelos animais iniciados por 'E', que nomes teriam? Elefante? Esquilo? Até que não nos foi tão rude o destino.
Oh, Capitão... volto à pauta esclarecendo que não será sem constrangimento o meu esdrúxulo pedido, que já lhe deve rondar os miolos a essa altura. Fa-lo-ei já, falo antes de Équidna um pouco mais. Minha amada irmã, sabes bem, é de saúde frágil. Chego a folgar secretamente - não sei se peco - no fato de não ter sido a ela concedida a ventura do matrimônio. Não me tomes por desnaturada, que me explico. É que precisa de cuidado, a pobrezinha. Não suportaria a atarefada rotina de esposa e mãe, embora - conto-lhe secretamente, conto com a discrição de costume - eu tenha cá comigo a impressão de virem daí, da falta, digo, da falta da rotina de esposa e mãe, muitos dos azedumes e flagelos que a ela teimam em assaltar. E são tantos, Capitão! Teve febres, dia desses. Dores tantas, indigestões. Terrores noturnos, eventualmente. Pesadelos, muitas vezes. Ah, Capitão, quisera eu conhecer a causa e a cura de tão grande mal...
Alívio sutil foi concedido pelos céus a minha querida irmã nas últimas semanas, desde que se soube homônima do bicho australiano. Graças ao belo desenho - lembras-te do desenho? - que tão apressadamente fizeste, até hoje guardado como relíquia no baú de lembranças do quarto, não há na família quem não conheça as suaves formas da équidna, entenda-se, o bicho. Bordada em toalhas e guardanapos, pintada em telas e - pasme - até riscada a traços de carvão na parede do quarto! E os escritos? Poemas, odes, acrósticos, elegias e todo tipo de louvores ao mimoso bichinho. Agora as idéias de viagem, que muito me assustam. Imagine que Équidna sonha - somente dormindo, presumo de ouvir-lhe as falas da madrugada - ir à Austrália! Ah, a Austrália...
E aprouve aos mesmos céus, Capitão, meu bom Capitão, justo nesse momento crucial da vida de Équidna, enviar-te a ti à terra do bicho-nome. De posse deste saber. e do saber de teu já conhecido espírito de solidariedade e amor ao próximo, é que venho pedir-lhe o obséquio de realizar o sonho de minha irmã, Não o de ir a Austrália, que a ela falta saúde e força, mas o de conhecer de vista, mão e cheiro o bicho cujo nome lhe foi dado. Peço-lhe encarecidamente o favor de vir ter com Équidna, trazendo-lhe de presente o objeto de todos os seus sonhos recentes: Uma équidna-bicho, ou filhote, ou ovo. Algo que encherá de alegria os dias e o coração solitário de minha irmãzinha. Creio e tenho certeza de que tanto a tua presença quanto a do mais belo animal já visto por olhos humanos, esta beleza da qual minha irmã teve a sorte de herdar o nome, hão de tornar a nossa Équidna a mais feliz das almas.
Encerro aqui esta singela carta, rogando aos céus pela tua saúde e breve retorno
Respeitosamente,

Ema D'Albuquerque Feliciano

quarta-feira, maio 29, 2002

Eu queria pintar um quadro agora. Só assim eu ia poder gritar. Grito de palavra é tão difícil, e quase nunca tem ninguém pra ouvir. Queria pintar um quadro assim todo bagunçado. Abstrato, né? É, desses que pulam em cima de quem olha. Será que alguém vai olhar? Todo artista tenta botar na obra o seu grito, mas acho que ele não é ouvido, não. Porque quando você olha, ouve, lê, põe a mão numa obra de arte, na verdade o que vem é o seu grito, mesmo. Você escuta o que o artista disse do que você mesmo queria ter dito, entende? Eu queria fazer uma música hoje. Não. Queria fazer uma sinfonia. Ela seria bruta, forte, muito intensa. Por falar nisso, como pode você, você aí, ser tão intenso por dentro, intenso tão dentro, que não percebe o outro aí do lado a não ser no que nele homenageia você? Eu queria escrever agora, mas não isso aqui. Queria escrever o que tenho em algum lugar aqui dentro, mas que nunca até hoje conseguiu virar palavra. Eu queria virar palavra. Ou talvez som, cor. Um dia eu viro.

terça-feira, maio 28, 2002

Olha o vento, olha... que medo! Não por causa da tempestade, os raios até que são bonitos. Luz e ímpeto, e pouco tempo pra pensar. O vento não, é lento mesmo quando em fúria porque nele a gente vai, vai, e luta ou se rende, mas vai. E não sabe pra onde. Você também tem medo? É medonho mesmo esse tal de não saber pra onde, não ter âncora. Talvez o 'pra onde' seja bom. Quando eu era deste tamaninho imaginava que todos os lugares, paisagens nos quadros nas paredes, eram de verdade, e eu queria atravessar as tintas e chegar neles. Uma cabana tosca à beira de um lago brilhante, eu achava que ali era o lugar mais feliz do mundo. Mas quem é que sabe, se nunca foi lá? Tentar? Nossa, dá até um frio na barriga... Talvez seja ruim, feito uma caverna. Como dentro da gente às vezes, que a gente até tem medo de olhar pra dentro. Olha o vento, olha... tão fresco, tão livre. E se talvez eu soltasse só um pouquinho, se eu voar só um pouquinho... você segura a minha mão?

segunda-feira, maio 27, 2002

Dentro da gente é criança, mesmo. É assim, um inquieto esperneante, medos e vontades e nenhum controle. O controle é fora, rondas e grades, cadeias e bolas de ferro bem grandes. Nem sempre adianta. Tem mulher-menina de chantagem e veredito, um abismo assim profundo que captura e amedronta, e cobre de fogo e água, grito e choro. Tem homem-menino de fuga e violência, feito deserto de areia fervente que de repente gela, e migra e invade e assola de febre e frio, silêncio e fúria.
Dentro da gente é assim, confuso, e só por muito ser é que se domina a alma. Porque dominada a criança percebe e acalma um pouco. E nesse tempo curto, na paz do acalmar, é que se pode olhar em volta e beber devagar o vazio do grito, choro, silêncio ou fúria. Pode-se entender. Ouvir mais do que o próprio som, sentir mais do que a própria pele. Talvez quando outra pele se dê a sentir. De verdade. Será verdade? Tomara que sim.

quinta-feira, maio 23, 2002

só__sei
que__você
me__faz__bem
e__estranhamente
a_c_h_o__q_u_e__j_á__s_e_i
o___s__u__f__i__c__i__e__n__t__e

quarta-feira, maio 22, 2002

três

Tentei migalhas de pão. Trago sempre muitas, quase pesam, e nunca soube para quê. De cada momento fato sentimento imagem sensação uma migalha memória. Banquete ínfimo insignificante, quente de mim, e vieram. Vi-lhes claras as cores, finalmente. Devoravam-me as migalhas, fundiam-se a elas. Eram um agora curto, mas vivo, luzes de beber, e bebi. Mas foi só o agora.

Porque não a água? Sim, a água outra vez. A mesma que de lago gélido a mar revolto a chuva morna a cachoeira incontida foi sempre o mesmo eu. Signo do fogo? Cadê o fogo? A água alimenta.

terça-feira, maio 21, 2002

dois

Sim, eram como idéias, os peixes. Quis falar-lhes em silêncio reverente ao silêncio solene de que são feitos, para que me ouvissem, respondessem. Perguntei-lhes qual de meus ardis, puerilidades de alma que se recusa a saber-se grande, seria capaz de detê-los ao menos por instantes, para que os conhecesse. Silêncio. Idéias são assim, também, silenciosas. Mas falam.

Fosse lago, mar, chuva ou cachoeira, era sempre a água. Desde a primeira, aquela de onde nunca nascera por completo. Sentia-se assim, às vezes, bicho meio-nascido. Girinozinho minúsculo, propriedade da água ainda, que espera o dia de deixá-la embora não o deseje.

segunda-feira, maio 20, 2002

PES-CAR v.t.d. 1.Apanhar na água (peixes e outros animais que aí vivem). 2.Colher da água (pérolas). 3.Averiguar, investigar.

um

Pareciam luzes dentro d'água. Móveis belos arredios, tão mais ágeis quanto mais os desejava, segundo a segundo... primeiro de tudo porque eram parecidos com idéias. E exibiam-se, e sumiam no escuro nem tão fundo, mas muito secreto, com tal leviandade que despertavam raiva quase tanta quanto era o amor.

"mas sabe, pescar é muito mais fácil pra mim do que vender o peixe... na verdade os peixes pulam em cima de mim."
. Naquele momento a frase não pareceu arrogante. Nem depois. Sabia-se aquário superpopuloso, em colapso, e peixes que saltam ferozes. No começo eles se perdiam, debatendo-se no chão em seco desperdício. Depois aprendera a conservá-los, intrigantemente vivos, e brilhavam à vista, exibidos. Contrastavam peixes e água com o fogo invisível dentro, longe, grande, soberano. Fogo de queimar e não consumir.

sexta-feira, maio 17, 2002

O porquê eu não sei, não senhor. Só perguntando pra ela. Não, não sei quem é, também. Diz ela que nem ela mesma sabe. Me deu essas moedas aqui e pediu pra trazer isso e dizer umas coisas pro senhor. Aí eu perguntei porque é que ela não escrevia uma carta, ela disse que carta é pra ser respondida, o que ela queria agora era só dizer. Aí eu perguntei porque é que não vinha ela mesma falar, e ela disse que eu não tinha nada com isso. Não ri não, moço. É sério. Acho que a dona é maluca, mas eu disse pra ela que vinha, e palavra de homem não volta atrás, né? Primeiro ela falou de um tal de esconderijo que o senhor deu pra ela no temporal. Engraçado, faz tanto tempo que não chove. Quando ela falou isso lembrei daquela casa mal-assombrada do filme, que chove só em cima dela. Vai ver foi uma chuva assim, só dela, né? Dessas que a pessoa não espera, e pode até ficar doente. Deve ser bom isso de não deixar alguém ficar doente. Ela mandou pro senhor essa florzinha aqui, viva, plantada na terra. Disse que o senhor ia entender isso. Isso o quê, hein? Tá bom, tá bom, eu termino de contar. Ela falou também que ainda não levou o senhor na casa dela toda por causa da bagunça, mas o senhor é bem-vindo, e um dia que nem tá muito longe a casa vai estar arrumadinha pro senhor conhecer. Disse que o senhor levou um sorriso pra ela, e mandou um beijo. Só isso, tchauzinho... Engraçado, o olho dela brilhou enquanto falava igualzinho o seu tá brilhando agora!

quinta-feira, maio 16, 2002

Lembro da sala clara. Muito, mesmo. Branca do teto ao chão, bem montada, e grande, imensa. Devia haver centenas de alunos ali, mas todos em ordem, interessados, participantes. Adultos como os do meu dia-a-dia. Aula noturna. Eu estava ligeiramente desconfortável porque não ocupava o nicho típico do professor, aquele de mesagrande/cadeira/quadronegro/latadelixo. Não, eram mesinhas de alunos por todos os lados, e me observavam atentos. Eu falava. Sala muito clara, muito tranquila. Tudo sob controle. Um deles se levanta e começa a falar. Ele tem roupas extravagantes, em cores que se destacam no meio dos outros, parece divertido. Interrompe a aula, ri, fala alto, se diverte. Olha nos meus olhos o tempo todo. Sorriso duro, meio revoltado. Mas quase simpático. Meu Deus, do que ele falava? Não lembro das palavras. Agora é como se eu não as escutasse. Tento contornar a situação, sou dura com ele. Pareço forte, forte, que mentira. Ele grita agora, ainda sorrindo. Está me acusando de algo, não sei do quê. Não lembro, não sei se era mentira ou verdade, mas sei que me desesperava. Ele grita e ri. Ele é adulto, mas pequeno. Contrasta com meu porte grande. Mas está no comando agora. Os alunos observam ainda em silêncio, expressões de espanto. Eu o ergo no ar e o levo até fora da sala. É tão difícil. Conto tudo à diretora entre soluços, ele sorri pra mim. Grito muitas vezes "Não volte!". Volto à sala, murmúrios, comentários de preocupação, sento numa das cadeiras dos alunos. Baixo a cabeça e choro. Acho que pela primeira vez na vida chorei dormindo, lágrimas escorrendo até o travesseiro. Acordei com meus próprios soluços pouco mais de uma hora depois de ter adormecido.

quarta-feira, maio 15, 2002

IN-TROS-PEC-ÇÃO sf Exame que alguém faz dos próprios sentimentos ou pensamentos.

Estranho... lá fora a cascata é barulho e movimento. Ensurdecedora, frenética. Aqui é murmúrio contínuo, quase suave. E escuro. Curioso, as águas móveis não são transparentes. É fresco também. Como se entra aqui? Por que se entra? Pode-se sair? Prefiro ficar, parece seguro. Ninguém sabe das cavernas por trás das grandes quedas d'água. Ninguém sabe. Não, não podem saber. Que aterrorizante descobrir esses buracos disformes por sob águas tão fortes, tão retas. Lá fora a cascata é domínio. Ela não tem dúvidas, não hesita, não pede abrigo, não cede, não pára. A vida não pára. Aqui é sossego. Não para sempre, que a hora de sair sempre chega, pressão insustentável de vida em queda livre. Livre é o que há de bom na queda. O inevitável. Lá fora a cascata é medo e desafio. Vou descansar aqui agora. Não perturbe.

terça-feira, maio 14, 2002

"A chuva começaria forte, como se houvesse esperado calmamente o momento certo. Jeito de tocaia, mesmo, espreitando um nosso deslize, talvez. Cairia com estrondo, feito uma blitz, buscando infrações dignas de multa. Deve ser fria a água de uma chuva assim. Não faz mal." A vontade de chorar apertava, produzindo no estômago o efeito de uma torção, quase náusea. É, o corpo tem dessas coisas, expulsar o que faz mal. Mas não adiantava agora porque o que fazia mal era um não-ter. Desejava aprisionar em vez de expulsar. Impossível. Pelo não-ter só se pode mesmo chorar.
"Riríamos juntos da nossa doce rebeldia. Crianças capazes de nadar na própria liberdade. Você abriria os braços, jogando a cabeça para trás, eu de fascínio me sentindo chuva." Não choraria agora, definitivamente. Chorar agora equivalia a entender a dor como derrota. Respirou fundo um ar amargo, limpou duas lágrimas fugitivas e pôs-se de novo a pensar no ciclo das águas, enquanto olhava através da janela a chuva que se recusava a cair.

segunda-feira, maio 13, 2002

Era uma guerreira.
Olhava a fonte e o abismo diante dela.
O abismo era largo e fundo.
A fonte cristalina.
Ela tinha uma sede profunda e antiga.
Sentiu as pernas fortes e ágeis.
O abismo era largo e fundo.
O cristal da fonte.
Primeiro pensou, depois parou de pensar.
Tomou uma distância prudente. A fonte brilhava.
Correu, correu.
Saltou.
O fundo do abismo.
Silêncio.
Hoje é dia de tratar das feridas.
Amanhã, de escalar o abismo.
De que lado?

quarta-feira, maio 08, 2002

Estranho essa coisa de mãe. Essa ligação entre o filho, o útero e a eternidade. Isso de saber pra sempre que a gente não é só a gente. É mais alguém. É de mais alguém. É por mais alguém, mesmo sem querer. Mesmo sem 'o alguém' querer. Estranho isso de sentir dor por outra pessoa, e de ter tanta raiva quando ela sofre. Porque é que os filhos têm que sair da barriga das mães? Lá dentro é tão seguro... Tão pleno o poder de proteger.
Mas é assim, a vida. Eles saem, e o pior, crescem. E mais do que criar pessoinhas 'pro mundo', como diziam as nossas avós, é tão incômodo esse indispensável (impensável?) de criá-los pra si mesmos. Pra que cresçam, existam, e - pior de tudo - sofram por si mesmos. "Mas mãe, eu é que tô com problemas, porque é que você tá chorando?". Todas as mães são assim, filha. Malucas de amor, pra que vocês, coisinhas imensamente intensas que a gente põe pra fora da gente todo dia - é, sim, vocês sem saber insistem em estar aqui dentro mesmo quando grandes - comecem sua aventura na selva da vida bem protegidinhos. A natureza é sábia, nós é que não somos.
Mas o saldo final é positivo, sabe? E se posso me dar ao luxo de ser piegas, como pede o assunto, tem um monte de paraísos nesse padecer. Gargalhadas dobradas, desenhos borrados, segredos - ah, eu sempre soube que seriam tão preciosos - contados sob juramento de fidelidade eterna. Bombons divididos, bilhetinhos e aquele ar de quem já saiu há tanto tempo da barriga que daqui a pouco nem vai precisar mais ficar perto dela. Não é que a coisinha cresceu, e deu certo? Ah, filhos... que tal dar colo de presente de dia das mães?

terça-feira, maio 07, 2002

Não sabia de onde era, e isso não era surpresa. Era de tão longe, um longe que não dava pra dizer onde ficava. Longe de dentro. Talvez seja por isso que tem gente que a gente chama de vasta. Gente bonita de ver, mas que se arrisca toda hora a se perder lá dentro delas, de tantos caminhos. Então não sabia, e pior, parece que queria saber. Olhava pra si mesmo procurando umas respostas que ninguém tinha, como se a falta delas fosse de se condenar.
Sabia um monte de coisas que não era, e um pouco do que era também. Só não sabia que não ser é uma parte de ser. Que ser é ser feito de vazios.Sabia isso de ser humano-necessitado, e esquecia que humano é o mesmo que necessitado. E isso doía.
Por sorte existia o tempo. Sempre existe. E era muito. Muito mais futuro que passado, e o futuro era todo feito de respostas. Assim vivia mais perto delas a cada dia, ainda que nunca as alcançasse. E o nunca nem demoraria tanto, pra quem vinha de tão longe...

domingo, maio 05, 2002

Trezentosequarentaeseis... trezentosequarentaesete... trezentosequarentaeoito... que horas são?... trezentosecinquenta... Se ao menos passar das quatro, cinco e meia levanto mesmo... trezentosecinquentaetrês... Raio de torneira, raio de noite que não acaba...
Esperar é feito guardar um segredo. Olha-se para aquelas coisinhas débeis dentro da alma, meio disformes e tão numerosas, que se fazem chamar sonhos, e é quase engraçado... Cada um deles é tanto, e vive tanto. Pedaços de eternidade encravados numa vida onde não poderiam caber. Como algo tão delicado pode ter poder tão grande?
E o mundo nem aí, gira e pronto. A vida segue... trezentosecinquentaaenove... Tem jeito não, melhor desistir que enlouquecer, mais um pouquinho viraria caso de hospício.
Mesmo a palavra esperança tem um quê de aflição. Sim, porque é esperança no invisível e muito, muito imaginado. Naquilo que não se tem. Parece então que só se espera o impossível. Depois da esperança a realidade vem sempre faltando um pedaço para ser o sonho ( talvez ela - a esperança - vire verdade incompleta pra que outra esperança possa vir a existir - deve ser assim que elas se reproduzem). E amanhã é afinal o melhor de todos os dias. Esse, que nunca chega.
Quatro em ponto. Sorria desses acasos que faziam o tal do acaso parecer ter mais noção de hora e lugar que a gente mesmo. Sorria triste porque ficava triste na insônia, sempre. Rendia pouco, errava, odiava errar quase tanto quanto odiava esperar. .
Esperar é parecido com olhar através de paredes de chumbo. Enxergar por querer, o querer. Criar do invisível, levar imagens e histórias na bagagem, que na falta de vida viva o sonho. O agora então vai ficando assim embaçado, e quase some, asfixiado pela espera.

sábado, maio 04, 2002

Conquistar não é tão difícil como parece, sabe? Tá vendo aquela garrafinha ali pendurada? Água com açúcar. Atrai beija-flores. É assim que se os conquista. É preciso algo de fluido e doce, disponível e perceptível. Conquista-se assim, mesmo que por momentos. Todo mundo tem águas e açúcares escondidos para as conquistas. Olha, olha.. lá vem ele. Viu que lindo? Outro dia um desses se enfiou janela adentro e perdeu o rumo. Quase morre sem conseguir achar a saída. Perdeu duas peninhas, agora é com elas que eu marco aquele livro de poesias. Lembra, aquele que eu queria ler pra você? Não deu tempo, você tem sempre tanta pressa... Bobagem, nem todo mundo gosta de poesia. Foi embora, amanhã ele volta. Conquistar é assim, simples. Não, não vá ainda. É cedo. Vem outro daqui a pouco, mais bonito. Só deixam de vir se acabar a água com açúcar. Acaba, às vezes. Manter é mais difícil que conquistar. Tá bom, tá bom... não vou te prender mais. Amanhã virão outros pássaros. Sempre virão. Então te espero.

sexta-feira, maio 03, 2002

Pousa de novo na minha janela. Já não se pode saber se de novo ou outro. É que os pássaros, embora não sejam de forma alguma todos iguais uns aos outros, são todos tão iguais ao que desejamos num pássaro que somos incapazes de distingui-los. Pousa, e lá está, sem nada fazer além de ser e estar.

É livre, de uma liberdade transparente, esvoaçante, que eu não vejo mas sei que é ali na forma de uma aura lilás. Eu a quero azul, mas é lilás porque os pássaros são livres, aura feita de liberdade e canto. Sinto um aperto bom no peito, como se pousasse em mim e não na janela. Beijo-pássaro. Quente, móvel. Tão pequeno e inquieto que tenho medo. Mas sei que a janela também sou eu, então se em mim queima essa vontade repentina de que ele esteja ali para sempre, também o sente a janela, é possível. E caso ela o tente aprisionar? E tentando, o fira, ou não o ferindo – pior – o afugente? Censuro-me com força por ter pensado ser pior perde-lo que feri-lo. Passa. Temo o ímpeto de minha janela, mas nada posso fazer. Espero.

Dou-lhe um nome, rápido, como na pressa de torna-lo ao menos um pouco meu. É tarde fresca no Alto da Boa Vista. Dindi, penso, sem-jeito. Não contarei a ninguém, mas será Dindi, e pronto. O engraçado é que eu jamais havia cogitado dar nome a um pássaro de gaiola. "Se um dia você for embora me leva contigo, Dindi...". Nunca dei nome a pássaro prisioneiro porque sei que todo pássaro é feito de vôo e de ir embora. Não cabem em gaiolas. Nelas, não são pássaros. Olho através da janela, e de Dindi, e lá está a mata mágica do Rio de Janeiro. Ainda está lá, solene, como que infinita de tanta fragilidade, encravada no meio da cidade como um selo vivo. A floresta redime a cidade. Sorrio de orgulho do meu lugar.

‘Dindi é nome de mata!’, ouvi indignada um amigo rir, certa vez. Entendo agora. Imagino como quem lembra... O maestro olhando a mata, apaixonado, e com gestos invisíveis tornando suspiro em música. Havia mais matas, antes, e mais paixão. Mais pássaros, mais suspiros, mais música...

Agora ele canta.

Não, não estou sonhando. O pássaro olha para mim e canta. Fervo de tanto ser, e dentro é como que uma dor doce que sorri e cresce, e tenho medo de não ser suficiente para ela. Tambores soam no peito, mas é difícil respirar lento e leve o suficiente para ouvi-los. O olhar vibrando de coragem, tentando aprendê-lo em formas e cores. Talvez ele seja um sabiá – nada sei de pássaros, ou de vôos, fui sempre do chão – ou um coleiro, ou um anjo. Sei que canta sem o medo que preciso que ele tenha, para que não veja o medo em mim. Faz sua serenata não solicitada, decidido e indiferente. E me olha ágil, firme, como que pedindo resposta.

Não sei cantar de pássaro, e ele me olha. Ah, eu cantaria, sim, o beijo-pássaro. Cantaria coragem e voz. Vôo forte e pouso leve, leve. A mata-casa que vai sumindo, embora uma Floresta da Tijuca tão enorme quanto o quadrado da minha janela se mostre agora, exibida. E é tudo que vejo de não-meu além do castanho Dindi.

Não-meu. Eu sei, mas finjo que não.

Sendo feito de ir embora, não foi. Não ainda. Se for, não haverá ‘me leva contigo’, eu sei. E espero que não vá. Não agora. Espero que espere. Ao menos até que eu o escreva inteiro, de todas as parcas formas que compõem o que afinal é a minha forma de cantar.