quarta-feira, abril 25, 2012

Eu converso com você igual a um rio. Ora suave, barulhinho de fonte, luzinhas, risos, brilhos, ora fundo, escuro, quase sólido. Lento, árduo, muito tenso de barragens, vai saber de onde vieram. De repente corredeira, pedras traves troncos rolando junto com a água e o meu medo que vai embora mas fica tão visível enquanto isso. É assim que eu queria permanecer, mas rio não é coisa que se planeje, e corredeira não é coisa que permaneça. Eu converso com você igual a uma água muito limpa que se espalha nas margens, espumando festiva enquanto você bebe e brinca. Ali descansam perguntas e idéias que eu esqueço de te dizer na turbulência, mas sei que você ouviu mesmo assim, porque tem sempre não sei por quê uma sede tão grande e bem-vinda. Por isso - da sede que reconheço de uns sonhos antigos - é que fluo em dúvidas e espanto, e um transbordamento de mim mesma que não controlo e não entendo. Espalhada, lânguida, irrecuperável. Exposta e visível imagem no espelho, tanto mais clara quanto mais o seu riso e os seus olhos se abrem sobre ela. E é música, o som do rio, tanto mais alta quanto mais o seu riso e os seus olhos se abrem sobre ela. Estrondo de represa demolida, fogos de ano novo assustando e atordoando como assustam e atordoam todas as coisas novas, e um medo e um gozo e um grito que eu não solto, mas já não sei onde está.

sábado, março 21, 2009

Desventuras em série

Era quinta feira na Escola Municipal. Dia de PROVA.
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Os alunos se dirigiram às respectivas salas acompanhados de seus professores, estes portando pilhas de cadernos de prova e duas folhas de instruções ao professor. Uma das instruções se referia ao horário: duas horas a contar do toque da campainha, tempo no qual todos os alunos deveriam permanecer na sala, independente de terem terminado a prova ou não.
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As três últimas páginas da prova continham o questionário sócio-cultural, a ser preenchido pelos alunos após a prova, mas não imediatamente após, pois a folha de instruções ao professor rezava que se haveria de cumprir um intervalo de vinte minutos, durante o qual todas as turmas deveriam se dirigir ao pátio da escola e desfrutar de seu horário livre. Após o intervalo, retornassem às salas a fim de cumprir esta segunda etapa.
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Terminadas as etapas determinadas pela folha de instruções, os professores se dirigiram à sala dos professores, a fim de proceder a correção e registro do desempenho dos alunos. Receberam novas instruções, além de canetas e formulários a serem preenchidos a mão. Sua tarefa era:
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- Corrigir as provas;
- Anotar TODAS as respostas corretas em formulário próprio (NÃO HOUVE CARTÃO RESPOSTA NEM MÁSCARA DE CORREÇÃO);
- Contar as respostas corretas;
- Somar o total de respostas corretas, obtendo a média da turma;
- Somar e totalizar os acertos da turma em cada questão da prova;
- Transcrever para formulário próprio TODAS as respostas do questionário sócio-cultural;
- Somar o total de respostas em cada alternativa de todas as questões;
- Contar separadamente, obtendo número total de acertos e média do desempenho da turma nas questões de Lingua Portuguesa;
- Contar separadamente, obtendo número total de acertos e média do desempenho da turma nas questões de Matemática;
- Entregar todos os formulários, tabelas e folhas de registro ao coordenador pedagógico, a fim de que este procedesse, a partir destes formulários, tabelas e folhas de registro, o preenchimento de outros formulários, tabelas e folhas de registro próprios de seu cargo, expressando o desempenho da escola como um todo, enviando este trabalho ao "órgão central" IMPRETERIVELMENTE até a segunda feira seguinte..
- Não foi utilizado NENHUM COMPUTADOR em nenhuma das tarefas exigidas dos professores, uma vez que todo o registro deveria ser entregue pelos professores escrito a caneta;
- Não foi necessário registrar nenhuma observação de desempenho individual dos alunos;
- Não foi reservado tempo específico para a realização destas tarefas; elas deveriam ser executadas DURANTE (?) ou APÓS o trabalho em sala de aula;
- Não foi permitido o retorno dos cadernos de prova aos alunos e responsáveis, para ao menos desta forma tomarem conhecimento de seu desempenho.


Sabe há quanto tempo essa história REAL aconteceu? 20 anos? 30? 50 anos? Parece, não é?
Isso FOI HÁ DOIS DIAS, durante a "Prova de Revisão" determinada pela Prefeitura do Rio em todas as escolas da Rede Municipal.
Não, não é piada!!! FOI ASSIM MESMO QUE ACONTECEU!
Quer saber se os alunos ficaram duas horas em sala? NÃO!!! Eles não aguentaram o calor e o tédio, as salas viraram infernos e muitos professores foram obrigados a liberar suas turmas!
Quer saber como foi o dito 'intervalo' depois disso? O CAOS! Sem poder sair da escola, os alunos promoveram brigas e gritarias, sendo levados às pressas de volta às salas!
Na volta, ao receber A MESMA PROVA de novo, alguns riram, alguns se negaram a preencher, alguns preencheram sem nem mesmo ler...

Quer saber se os professores cumpriram suas tarefas? Infelizmente sim. Nem esse nível de desrespeito foi suficiente para nos fazer reagir, exigir um mínimo de condições de trabalho, repudiar as propostas estúpidas de trabalho que nos são feitas por 'patrões' que absolutamente não sabem o que é a realidade de nossas escolas.

Infelizmente temos um novo Governo Municipal que já se mostra capaz de criar novas e surpreendentes maneiras de sobrecarregar, desmotivar e humilhar seus professores. Este foi um dos poucos dias na minha vida profissional, a despeito de todas as dificuldades, em que lamento sinceramente ser um deles.

quarta-feira, dezembro 03, 2008

Lista de Desejos

Quero um ano novo e bom. Não sem defeitos, mas cheio de qualidades. Um ano de coisas e pessoas queridas, de ser mais que um. De ser e estar junto, rir e chorar junto. Quero um ano de belas marcas, não sem dores. É que as marcas doem mesmo. E as dores passam. Sim, quero um ano cheio de dores que passam. E cheio de alegrias daquelas muito esperadas. Surpresas também, mas não sustos. Tenho estado assustada desde... Quero um ano sólido e suavemente colorido. Ah, e claro. Quero a águae o ar límpidos e mornos, mesmo em turbulência. Quero guardar tudo. Quero dividir tudo. Quero celebrar tudo. Quero ser nova mesmo com cabelos brancos. Quero a vida imperfeita e passageira, exuberante e luminosa. Quero ser melhor que antes, porque nada é como antes. Quero viver o presente e cuidar do futuro. Quero lembrar. Quero ser e estar feliz. Feliz ano novo.

quarta-feira, novembro 12, 2008

Sobre meninos e cactos



Uma vez ouvi algo sobre o amor e a necessidade de abraçar, mesmo que algumas pessoas sejam como cactos ao serem abraçadas, uma vez que o abraço dá em retorno ferida, dor e marca. É sobre algo assim que escrevo.

Sou professora de Ciências da Rede Municipal do Rio de Janeiro, lotada e em exercício de regência numa escola em Campo Grande. Uma das turmas sob minha regência nesta U.E. é a Turma 1607, da qual fazem parte os alunos X e Y. Os citados alunos apresentam há muito um histórico de indisciplina e desrespeito aos professores, colegas e seres humanos em geral, o qual vem sendo tolerado por todos nós assim como o de tantos outros meninos e meninas dessa e de outras escolas, dessa e de outras redes.

Hoje, 11 de novembro de 2008, durante a aula de ciências, X e Y mais uma vez se recusaram a participar da atividade proposta, X insistindo em sair da sala para beber água. Eu disse que se ao menos começasse a tarefa ele poderia ir, mas não obtive resposta. Continuaram as conversas, as provocações aos outros colegas, o deboche e risadinhas e a atitude hostil de hábito. Nenhuma dessas atitudes me trariam aborrecimento digno de nota, uma vez que, como dito, professores da rede pública SÃO AGREDIDOS MORALMENTE TODOS OS DIAS SEM DIREITO DE DEFESA OU REAÇÃO.

Uma das frases de X no decorrer da aula foi: “Estou esperando só a minha presença para vazar” (SIC). Ao chamar seu nome, anotei a presença e quando ele, já de pé e muito próximo de mim, perguntou pela presença, eu disse que a daria no final da aula. Ele se revoltou, começou a reclamar e se recusou a voltar ao seu lugar, e eu disse que ele somente poderia participar da aula sentado, e que caso contrário saísse da sala. Ele se recusou, prosseguiu com as provocações e quando saí para pedir ajuda ele finalmente saiu da sala, acompanhado por Y. Retornei, fechei a porta, e ambos imediatamente voltaram. Ao perceber que eu segurava a porta UM DELES (OU AMBOS) PASSOU A ESMURRAR E CHUTAR A PORTA, dizendo que iria entrar de qualquer maneira (com a porta fechada, não pude ver qual deles era). Tentei manter a porta fechada, e fingi ligar do celular para a diretora. Ao ouvir meu falso telefonema, ambos saíram correndo, voltando em seguida, talvez por perceber que eu não havia chamado ninguém.

Saí rapidamente da sala e gritei pelos funcionários da COMLURB, que eram as únicas pessoas no corredor àquela altura, dizendo que estava sendo agredida por um aluno, e um deles foi buscar ajuda. A diretora adjunta veio em meu auxílio e conduziu os dois à sua sala. Poucos minutos depois Sebastião voltava, invadindo a sala aos gritos de “Eu te bati?”, “É muito falsa!”, “Vai tomar no **!”, “F***-se!”, palavrões que também foram ouvidos por vários outros alunos da turma. Muito nervosa e me sentindo ameaçada, fui à sala da direção, disse o que acabara de ocorrer e me retirei da escola sem concluir as duas últimas aulas do dia.

Essa é apenas mais uma das muitas agressões morais, verbais e emocionais com as quais os professores, especialmente os da rede pública, vem sendo castigados cada vez mais freqüentemente. Fico pensando em até que ponto esse estado de coisas, onde a agressão só é assim considerada quando faz sangrar, quando leva o agredido ao hospital, precisa chegar para que comecemos a tomar alguma providência. QUE TIPO DE CIDADÃO ESTAMOS FORMANDO AO ACEITAR ESSA HUMILHAÇÃO? QUE TIPO DE RELAÇÂO ESTAMOS ASSISTINDO PACIFICAMENTE E MESMO ESTIMULANDO SE FORMAR ENTRE NOSSOS ALUNOS E SEUS SEMELHANTES?

Todos os textos para reflexão, debates, centros de estudos, reciclagens, revistas e livros pedagógicos atuais trazem a tônica da dedicação, do afetivo, da inclusão, do estar aberto à aproximação e às necessidades dos nossos alunos, o que é justo, válido e eficiente. Em 18 anos de magistério, 13 na Rede Municipal, aprendi a trabalhar com o coração e a me dedicar a meus alunos, mais do que a qualquer documento ou proposta escrita. Aprendi a dar e receber carinho e atenção deles, e a trabalhar em equipe. Tenho o privilégio de ser amiga de meus alunos e contar com a confiança e admiração da grande maioria deles. Minha dúvida/inquietação/indignação é: POR QUE NÃO SOU TRATADA PELO SISTEMA AO QUAL SIRVO COMO UM SER DOTADO DE SENTIMENTOS E DIGNO DE RESPEITO? POR QUE TANTO ESFORÇO PARA HUMANIZAR A RELAÇÃO PROFESSOR-ALUNO SE O PROFESSOR PERDEU SEU STATUS DE SER HUMANO?

Abraçar um cacto não é altruísmo. É conformismo e estupidez.
Magistério não é sacerdócio. É ajudar gente a crescer.

Por isso não abraço cactos. Prefiro gente.

sábado, outubro 29, 2005

A idéia de que sua vida pode não durar muito é um vendaval... não é como se imagina, o medo primeiro. Medo do desconhecido... Não, primeiro é uma passada a limpo de tudo o que você é e fez. Tudo o que adiou tanto que agora não vai mais dar tempo. Tudo o que prometeu e precisa ao menos tentar cumprir. Toda a diferença que fez e faz, todas as pessoas que tocou. Pessoas são tudo, e a gente vive por elas.
O medo vem depois, e não do desconhecido. Do desconhecido é curiosidade, quase. O medo é - cúmulo do egocentrismo, mas as circunstâncias permitem - do seu mundo sem você. Tanto o que preparar, tanta coisa a dizer a tanta gente, tanto o que fazer.... e some da vista tudo o que é menor que isso. O barulho da chuva, o sabor da água fresca num dia muito quente, o sorriso de alguém desconhecido, a música, o cheiro do mato de manhã cedo, a dança das nuvens antes da tempestade e o desenho do raio no céu, o abraço que é sempre adiado, a oração que é sempre adiada. As coisas saltam umas sobre as outras na memória, uma espécie de treinamento de emergência. O turbilhão toma conta, e a apatia e a depressão são os locais mais seguros.
Depois, pra alguns como eu, vem a notícia de que não é bem assim. Foi engano, alarme falso, você tem mais tempo por aqui do que imaginava. O turbilhão passa, e tudo está diferente... suas prioridades se invertem, e abraçar o filho, andar de montanha-russa e tomar sol ou chuva na cara com os olhinhos apertados passam a ser as coisas mais urgentes da lista. A vida, a vida, a vida está acontecendo bem agora, e não há tempo contra o qual correr, mas tempo que tem bem no meio um 'agora' que é todo seu. Tempo a ser sorvido com vontade, feito água fresca num dia muito quente...
Voltei do médico ouvindo Bach - e sua paixão pelas coisas que ele mesmo não conseguia entender - e olhando o mar, que hoje estava estressado em ondas enormes... o céu estava cinza, mas nossa, acho q nunca vi tarde mais bonita... definitivamente, a melhor coisa da vida é estar vivo!

sábado, junho 18, 2005

Chegou em casa como todos os dias, aquela névoa de cansaço na frente dos olhos. Dirigiu sem olhar, estacionou sem olhar, entrou sem olhar. Olhar as coisas pode ser muito cansativo, ainda mais quando elas te pertencem. Atravessou a garagem, o jardim e a varanda...a varanda. Parecia estranhamente mais espaçosa. Espaço é bom, espaço é bom. Dormiu o sono automático e a manhã automática o fez despertar. Saiu sem olhar, dirigiu sem olhar. O dia todo era como todo dia, e mais uma noite, o espaço. Assim foi por três dias, até a manhã de sábado, que não era automática porque não tinha despertador nem névoa de sono. Preguiça, sol na cara, já alto, o raro luxo de espreguiçar-se. A varanda e suas plantas, pacientes à espera de... não estavam lá. Três marcas redondas no piso, sujeira-pista-denúncia, roubaram as plantas e você nem notou. Nem para pôr uma tranca neste portão. Quem tranca plantas, se elas nunca fogem? Fugiram. Logo agora que se dispunha a garimpar disposição e coragem para cuidar delas e de suas histórias. Sim, porque nada vale mais numa planta do que sua história. Vivem muito, vêem muito. Sobraram algumas, felizmente. Se não as maiores (vasos pesados, devem ter ido de carro), ao menos as mais experientes, as de história mais velha e mais viva... regou e cuidou das que restaram, o coração apertado. Não serão mais as mesmas, de qualquer forma. Coisa feia roubar as histórias dos outros. Meio esquecidas, é verdade, mas não sem dono. Não serão mais as mesmas, porque história de planta não recomeça. Desperdício. Aproveitou as mãos molhadas para disfarçar a saudade-raiva-remorso que teimava em sair pelos olhos.

domingo, junho 12, 2005

Tantas vezes você passou ou esteve nesta sala, e nunca atentou antes para esta parede? E o quadro nela, também não havia visto? Não, claro que não há como ter certeza de que havia um aqui antes... mas por que não haveria? Não importa, olha: Parede e quadro, reais e inusitados. Perceber coisas pode ser tão difícil e surpreendente às vezes...
Inacabado. Sem moldura, sem todas as cores e tintas que provavelmente se pretendia. Toda forma de arte mostra o sonho de alguém, já te diseram um dia. Será verdade? Caso seja, eis aí um sonho inacabado. Coisa mais fora de propósito. Quem penduraria um quadro sem terminar de pintá-lo antes?
Olha bem, a tela semipintada a óleo, tons de marrom, amarelo, azul, e talvez outras cores dessas que pouca gente sabe o nome. Nenhum vermelho, certamente. Um vaso de flores, ali o vaso, mas as flores ainda como manchas brancas flutuantes. Em torno delas, traços verdes representavam folhas finas e longas, bonitas até, pendendo por sobre a borda do vaso, envolvendo ninguém. Ou melhor, envolvendo pequenos fantasmas do que poderia vir a ser um dia.
Talvez o que você sonha seja assim, incompleto. E então o olhar surpreso e repentinamente atento sobre o que se pretendia imagem, mas não passa de espaço, caricatura, vaso de folhas e fantasmas, acenda em você a santa indignação, impulso de retomar, concluir, arriscar, ou mesmo destruir. Fazer de novo, do zero, mas fazer.
Por isso já não parece absurdo que alguém pendure seus quadros inacabados, os feios, sem moldura, cores ou tintas suficientes. Monumentos mudos, marcos dos dias de silêncio. E da esperança oculta de que se possa, e se queira, retomar tudo o que se pensou esquecido, desistido.
Estou de volta, nem que somente pra mais uma pincelada.
Por um momento fantasmas parecem muito mais interessantes do que flores. :-)