domingo, julho 29, 2001

Está bem, eu fico só. Escuro e silêncio, está bem. Sem olhares que me não vejam, sem toque. Sem choque. Fico só, presa fácil do deus-monstro-solidão, tolo e voraz. Monstro grande de boca ávida de oferendas da Alma e da calma que perco e já quase não tenho. Está bem. Fico só em mim, só Alma, só mente. Somente peço, imploro e morro pelo dizer. Dizer de mim, de sonhos, e tantos, e tão grandes que não os posso ver inteiros. Então nego, mas vivem. Sonhos iguais, comuns, mas tão meus. Dizem que os sei contar, não sei se sei. Sei? Olha pra mim, assim em chamas. Olha isso de mim que assusta. Diz que posso, e vou. Fico só. Encolho e espero enquanto preciso e preciso que seja breve. Depois é depois.
Depois de tudo será a calma. Silêncio de céu limpo e escuro. Só no escuro ficam visíveis as verdades de dentro. Só-no-escuro-as-verdades-ficam-visíveis-de-dentro. Só no escuro há verdades visíveis, de dentro, fic... ah, contrastes! Contra-escuro de ser e ser. Um limpo novo e imóvel de tempestade que passou, e a calma.Só depois as certezas. De mistérios, de não saberes. Serena ignorância, humanidade. Vencer o humano é vencer o querer.
Talvez se deva só o que não se quer. O de que fujo é então o que preciso? Está bem, eu fico. Está aqui. Está o que sempre esteve, e foi, e fui. Só.

segunda-feira, julho 09, 2001

- Mãe, você deixa eu sair com um garoto?

Havia chegado o dia. Como é implacável esse tal de tempo! Outro dia mesmo o que saía daquela boquinha era um berro muito vivo, sob os tapinhas do obstetra. Agora eram aquelas atrocidades!

- Cumequié?

- Sair com um garoto, mãe. Mas é sair só até a pracinha - o sorrisinho maroto denunciava que ela já sabia a resposta.

- Ô menina, você só tem oito anos! Que idade tem esse rapazinho? - aquilo parecia pra mim um filme que se poderia chamar "Histórias do Mundo Cão".

- Sete!

Sorri de alívio e de mim mesma. Fiquei pensando no muito de não-mundo-cão que há nas crianças, e dei uma olhadinha furtiva e envergonhada para a criança que eu tenho/sou por dentro. Essa que eu chamo de Alma, e que é também assim desmascarada, simplificante das complicações da vida, mesmo quando parece o contrário. Mas é criança de pouca rebeldia, felizmente para essa eu-de-fora, casca adulta e limitada. Limitante então, bisturi de cortar asas, se necessário.

- Pode não! - Simplifiquei despótica, suplicando intimamente que essa fosse a última palavra. Nem foi, mas a pouco acalorada discussão que se seguiu, dada a pouca importância do seu objeto, acabou bem.

- Tá legal, eu já tinha dito isso pra ele - declarou quase rindo e foi para o banho, sem perceber o meu suspiro.

Dia desses eu conversava com um queridíssimo amigo sobre "desligar o superego". Penso agora no susto que essa possibilidade me causa, e no trabalho que sempre teve o tal superego para manter sob controle essa criança-alma, tão dócil quanto voluntariosa, que odeia renunciar. O renunciar a coisas ou a pessoas é ardido e árduo, mas ironicamente o é tanto menos quanto mais vezes acontece.
Fiquei ouvindo a vozinha daquela mulher-miniatura que agora cantava um funk sob a água do chuveiro. Ela afinal me parecia mais madura do que esta mulher-miniatura aqui dentro, que esperneia e grita, eu-criança-alma, diante de cada renúncia dessas tantas vida afora. Mas também cresce esta, eu sei. Como é implacável esse tal de tempo!


quinta-feira, julho 05, 2001

O casulo permanecia lá, impassível, diante do meu olhar indiscreto e impotente. Parecia tudo, menos vida. Ávida de símbolos, esta humanidade. Metáforas que lhe traduzam o não saber de si mesma. Pois bem, o casulo era cinzento igual a uma tempestade, e um pouco disforme. Eu não gostava do que via, mas secretamente conversava com ele, e não percebia que era porque é muito mais fácil conversar com quem não responde. Eu lhe fazia perguntas cujas respostas vinham de mim, e ele não assentia, nem contestava. Permanecia casulo cinza, imovel, e eu permanecia eu. Tanto o meu crescer quanto o meu diminuir eram eu. Anjo e abutre, comodamente inconsciente tanto de grandezas como de hipocrisias. Sim, porque nada somos mais do que humanidade.
Nada somos e nada podemos mais do que o humano. E lutamos pelo mais-que-humano. Seja o casulo, seja a tempestade, seja vida ou morte, seja a saudade meio absurda de alguém que foi embora de verdade, mas de quem não se conhecia mais do que as palavras; seja a culpa pela saudade absurda e pelo falar dela, o sentir-se tão pequeno... é tudo humanidade, e queríamos mais. E lá estava o casulo-morte-tempestade só pra me lembrar dessa pequenez não mais que humana. Desejei que se abrisse bem ali, diante dos meus olhos, e voasse tudo o que não consigo. Desejei uma certeza mais-que-humana de que as pessoas quando deixam esta vida voam tudo o que a gente não consegue. Mas a única certeza que tive foi a de que se vive nas marcas que se deixa. E no que é mais eficaz esse humano pequeno que somos, do que no marcar o humano? Quem vai embora arde em quem fica por causa das marcas. Mesmo de longe, mesmo sem rosto. Esperei, esperei... talvez visse o casulo vazio, dias depois. Não procurei, porque não veria o vôo. Só as marcas dele, e marcas já tenho muitas.

quarta-feira, julho 04, 2001

Olhava manso e direto. Um sem-cortinas que já a tantos intimidara que nem era surpresa quando alguém lhe evitava o olhar. Castanhos os olhos, e em sua modéstia ou falsa modéstia dizia-os ‘cor de asa de barata’, rindo. Profundo e vivo em olhares e palavras. Muito mais de olhar do que de ser olhado, mais de ouvir do que falar. E um enfrentar a si mesmo constante e dolorido que por vezes o curvava quase imperceptivelmente, espasmos-verdades.
Falava bonito, mas um falar bonito que nada tinha a ver com o palavreado rebuscado que nem gostava. Falava um falar que de bonito tinha o vir de uma região de si mesmo que prescindia e desconhecia palavras. E prescindindo e desconhecendo, apesar disso, ou talvez por isso, adquiria o poder de faze-las vivas e novas. Falava baixo mas nem sempre lento. Calava muito, um calar aflito e aflitivo de vida intensa, ardente, que de tão ardente logo cedia.
Sorria muitas vezes, mas tão discreto que pouco se percebia. É que sorria mais com os olhos do que com a boca. Talvez por isso aquelas luzes, que pareciam escapar dos olhos mesmo quando tentava, sabe-se lá por quê, mostrar um escuro que nem parecia seu. E eram tantas as vezes, como se temesse pela sorte dos outros diante do que era e pouco conhecia. Ser menos forte pelo bem dos fracos. Certamente sob dor forte.
Tinha mãos longas, firmes. Ágeis e precisas, e estranhamente apropriadas tanto aos esforços, não poucos em vida assim atribulada, quanto às delicadezas, estas de desejo e escolha. Podia transformar pedras em flores, gabava-se fingindo mentir, sem nunca deixar claro a que exatamente se referia.
Inaudíveis os passos, sensível e suave o toque, quase cerimoniosos os movimentos todos. Movia-se calmo mesmo quando aflito. Só nos olhos-faísca se lhe podia ver a fúria de alma, e eram poucos os que a viam. E tão próprio em reações e pensamentos que talvez fosse indiferente a uma tempestade ou talvez absolutamente arrebatado por um raio de sol. E se pouco se dava a conhecer de nome ou imagem, as muitas luzes de dentro o tornavam tão familiar que era como se estivesse estado sempre ali. E como se agora, conhecidas as luzes, fosse necessário mantê-lo ali sempre. E pra sempre.