sexta-feira, agosto 31, 2001

Talvez, talvez

Talvez venda e não cortina

Talvez tênue luz de lua,

Ora nova, ora cheia

Talvez prosa, talvez verso

Talvez tempo, talvez sorte

Talvez sol...

Talvez som. talvez silêncio...

de certa só a incerteza.

quinta-feira, agosto 30, 2001

Que coisa terrível, e deliciosa, essa de pensar sobre o amor..
Lembrando da paixão (tesão) da língua. É intenso, tá vendo? O humano é intenso, ávido, sôfrego. Os sentimentos humanos, então... é claro que não é o ideal. Ideais são as borboletinhas amarelas que esvoaçam sobre o mato aqui no meu quintal. Levíssimas, inexigentes, suaves, quase sonhos. Mas pousam quando não vemos, e morrem, também.
Ser leve então, eu penso e sinto, é escolha. É exercício e esforço de deixar o outro voar quando o queremos nosso (e é nosso também o vôo, muitas vezes, que lindo). Porque queremos ser barco errante - e como erramos! - e queremos o outro, confortavelmente, porto. Sim, porque o pouso inevitável da borboletinha amarela é sobre. E há que existir um 'sobre o quê'. Mas há que se ser leve por amor, também, que conhecemos os males do se deixar pesar em amores sobre alguém. Então é, repito, exercício e esforço. Mas vale a pena.
Quando um texto me move muito, é quase físico um sentimento assim: as palavras dançando em mim como peixes na água. Totalmente minhas, mas ainda assim difíceis de capturar. É como se eu tivesse - e tenho - muito mais a dizer do que digo, não por vontade. É uma angústia que vai do doce ao ácido corrosivo. Hoje é doce.
É assim diverso o sabor da tal angústia, penso, porque é diversa a solidão também, e ela é meio que reguladora das emoções todas. Então o que é compartilhado é sempre doce, até a dor ou a dúvida. O sentimento/idéia/pensamento compartilhado brilha, e seduz, e ainda que angústia é mais e mais desejado...
Parecem irmãs a solidão e a liberdade. Gêmeas, talvez. Talvez uma só. E não se deseja a solidão. Na verdade o próprio desejar a liberdade tem suas nuances de escravidão, se olharmos direitinho.
Ah, o que dizer do amor que ainda não tenha sido dito? Esse que é leve e livre e lindo, mas tão pouco consistente quanto a água que se beba para matar a fome, ou sobre a qual se tente caminhar. Esse que é refúgio, abrigo, mas envolvendo agrilhoa, alimentando sufoca. Assistia dia desses um vídeo sobre o nascimento dos animais, e era tão estranho o modo como a maioria deles não se desfaz em amores pela cria, a não ser talvez através daqueles cuidados indispensáveis à sua sobrevivência no começo da vida. Depois, é adeus, você pode sem mim.
Nem sei se digo o que acho, ou se acho. Mas disse o que veio à mente, deve ser o que sinto. E, creia, eu sinto muito melhor do que sei.

quinta-feira, agosto 23, 2001

O conto se chamava ‘Perdoando Deus’. O problema da Clarice Lispector é que as letras dela batem na gente e tiram lá de dentro outras letras, que começam a pular em desordem barulhenta, e quando se percebe já não se está mais lendo, mas escrevendo com os olhos. Era só o que eu precisava. Escrever com os olhos. Não que seja ruim escrever com as mãos, mas neste caso – e tanto o tenho feito, prazer abafado feito sexo com camisinha – não se voa, e é voar que me interessa, sempre.
Então as letras me faziam escrever com os olhos, e fiquei feliz porque nestes escreveres é que tenho certeza de poder achar as palavras que ando procurando, ávida. Dependendo de para quem ou sobre quem se escreve há muitas, muitas palavras que não servem. Muito secas, frias ou quentes demais, preguiçosas ou excessivamente ágeis. Andam caprichosas as palavras, onde irão parar? Eu procurava palavras fortes e doces, que portassem mesmo não ditas um certo ar tarado-elegante que forjado – e eu nem sabia que sabia forjar – me prendesse na pele aquele olhar que eu já sabia atento. Minha pele palavra. Mas quais?
Estariam certamente nalgum escrever com os olhos. Ah, sim, o conto era ‘Perdoando Deus’, e nesse livro eu vinha marcando as páginas com uma etiqueta, que eu colava na página seguinte à que eu lia. Dessa vez, terminado o conto anterior, eu a colara sem querer sobre ‘Deus’, no título que eu já sabia qual era. Mesmo assim cedi ao ritual de ler o título, levantando cuidadosamente a etiqueta e lendo ‘Deus’. Tratei de devolve-la ao lugar, e agora era só ‘Perdoando’, e eu também gostava. Prossegui. Mas aí já não lia.
Quando as palavras – certas palavras – chegavam , acordavam as palavras de dentro, que iam umas acordando as outras num efeito dominó ensurdecedor, e nada saía ou entrava, palavras congestionadas e eu ali, só sendo feliz. Tratei de fechar o livro, mesmo temendo pelo tudo que se abria em mim, mas eu sabia que era tarde e inevitável. Elas estavam aqui, serenas e cúmplices. Soberbas, autoritárias, insuportáveis.
Cheguei a sentir o sabor das palavras novas. Vi suas formas e cores diáfanas esvoaçantes. Quase pude toca-lo. Fugia. Dançava, forte, doce. Tentei detê-lo ainda. Sorria. Soube mais do que já sabia, que o olhar atento o é, sempre. Mesmo sobre palavras não ditas.

quinta-feira, agosto 16, 2001

Encontro - II
... Foi o que aconteceu. Emergi das minhas divagações e do ofuscamento gostoso daquele sol laranja e do milhão de estrelinhas da água bem a tempo de ver que aquela silhueta azul-acinzentada que se movia resolutamente na minha direção, embora ainda examinasse todas as mesas ocupadas à minha procura, era ele.
Nem foi difícil reconhecer o sorriso fácil, quase juvenil, no rosto maduro. Apesar de nunca o ter visto nem por foto, não foi difícil. Nossos sorrisos foram como abraços, e começamos – ou retomamos – uma conversa longa, a mesma de sempre, e sempre nova, dessas raras e vivas que jogam fora o tempo e trazem à tona a nós mesmos, tanto que chega a assustar. Mas já éramos versados nelas, assustávamos bem pouquinho, ao menos eu imaginava.
Tínhamos hábitos estranhos, ambos. Perguntas, respostas, até discussões pouco usuais. Por isso não estranhei quando ele quis saber exatamente qual dos carros estacionados ali em frente ao bar era o meu. Conversa fluida, interminável, e, descartado o tempo, era noite. Tão estrelada quanto havia estado o mar no pôr do sol. Meu gentil acompanhante pediu a conta, e me conduziu em direção à avenida, de modo que parecia que íamos em direção a um passeio à beira-mar, mas que terminou bem em frente ao meu carro estacionado. Ele bem conhecia o meu hábito infantil de dizer ‘fica!’, insistente, não importava o motivo da partida. Antes que eu pudesse dize-lo, então, me disparou um beijo na testa, entrou no táxi que eu nem havia visto parado ali no sinal e desapareceu. Sem que eu me desse conta, havia ficado em minha mão um envelope, e dentro dele, previamente escrita à mão, com caligrafia primorosa, a crônica de um encontro ao pôr do sol, exatamente como havia acabado de acontecer.

quarta-feira, agosto 15, 2001

Encontro - I
Olhei de novo na direção do sol, que era também a da rua, e da praia. Olhos muito apertados, eu divertidamente fingia me incomodar com o ofuscamento provocado pelos raios que invadiam os meus olhos, o bar e todo aquele fim de tarde quase mágico. Lá longe, no mar em frente, brincavam na água um milhão de reflexozinhos saltitantes como estrelas, espécie de presente de despedida daquele sol que daqui a pouco iria dormir.
Lembrei sem querer das aulas de ciências, aquilo de o sol não ir dormir, porque ele é uma estrela, e a Terra é quem gira, e a rotação e a translação, e que estrelas são gigantes incandescentes, e não reflexozinhos saltitantes. Professoras de ciências têm um quê de sádicas, como aqueles cirurgiões que manipulam bisturis sem pena sobre a carne das pessoas. Uma vez eu havia saído tristíssima da aula, ainda no primário, quando Dona Nancy contou à turma que o coração não continha sentimento algum, e a gente amava, tinha medo, ficava triste ou feliz era com o cérebro. Imaginei que horrível seria desenhar cérebros atravessados por flechas, em vez de corações, e escrever neles o meu nome ao lado do daquele menino lindo com quem eu tinha certeza que ia casar um dia. Odiei Dona Nancy e as aulas de ciências por duas longas semanas.
Havíamos optado, ainda por telefone, por uma mesa na calçada. Por isso não importava que o sol invadisse o bar, já que eu o esperava do lado de fora. Esperava o moço, que o sol eu não precisava esperar, havia estado sempre ali. O moço também, pensando bem... e eu pensava. As pessoas passam por este mundo em busca de afinidades, e quando as encontram é que se dão conta de que elas sempre estiveram ali. Certamente passam por nós, ou muito próximo de nós, pessoas com quem temos afinidades grandes que jamais serão descobertas. É terrível, mas o bom que é quando as descobrimos compensa boa parte da frustração.
O moço não estava atrasado, não. Jamais se atrasava, pelo que eu podia supor. Metódico, organizado, gentilíssimo, socialmente correto, como eu costumava dizer, debochadamente carinhosa. Carinhosamente debochados, éramos assim. E eu havia chegado minutos mais cedo justamente porque sabia que ele não se atrasaria, e queria a cena assim. Eu ali, bem acomodada, e ele chegando, procurando...
(continua)

quinta-feira, agosto 09, 2001

Parecia água. Filtrava os raios de sol do mesmo jeito, aquele jeito maroto que a água tem de fazer as coisas parecerem maiores do que são. Ou de fazer com que pareçam estar onde não estão. No vidro fechado parecia água porque a tampa impedia que se lhe escapassem os vapores, o cheiro forte de formol que por associação era capaz de denunciar a morte antiga que ali dentro estava guardada. O feto jazia imóvel ali há pelo menos dez, doze anos, e muitas vezes despertara nos observadores mais imaginativos conjecturas sobre como seria ou onde estaria este menino – sim, era um menino – hoje, se tivesse permanecido dentro da mãe, e nascido, e crescido...
Mas não havia sido assim. E ali estava ele, objeto de observação cuidadosa de professores e de alunos adolescentes do segundo grau. Aliás, parecia até contraditório, levando-se em conta a maioria, relacionar a observação cuidadosa aos adolescentes. Mas era assim, especialmente agora.
Não devia ter mais do que quinze anos a moça, ali acocorada atrás da mesa do professor, onde ficavam as prateleiras baixas com os vidros de formol. Entre as duas mãos o vidro com o menino, quase colado ao rosto, e o olhava, absorta. Cena nem tão incomum se o olhasse, como quase todos que o faziam, com curiosidade. Mas era olhar de derrota. Parecia que ela conversava com o menino, que o olhar a havia transportado para dentro do vidro e ela ali nadasse com ele, dolorida. Não percebia os colegas, não ouviu o sinal indicando o início de uma nova aula, não viu a chegada da professora nem a perplexidade dela, menos por presenciar aquela cena do que por compreende-la. Plenamente.
Segundos infinitos se passaram entre a entrada da professora e a volta da aluna ao seu lugar. Enquanto aguardava que a moça lhe permitisse o acesso à sua própria cadeira, a professora teve a lamentável sorte – há sortes lamentáveis, como aquelas que nos fazem saber o que preferíamos ignorar – de ler claramente a história que, já escrita, se mostrava no olhar da moça. Não tocou na aluna, não disse nada, e inexplicavelmente nenhuma outra pessoa naquela sala o fez, ao menos que tivessem percebido. Passado o tempo necessário para que se concluísse em ambas o que precisava ser concluído, a moça voltou para a professora uns olhos enormes, imensuráveis, brilhantes, profundos como abismos. Conversaram longamente, trocaram confidências, choraram juntas, tornaram-se cúmplices, tudo isso em não mais do que três segundos. Coisa de mulher, diriam os que o pudessem perceber, que há palavra que só elas têm, lembrança, história que só elas vivem, dor que só elas sentem.
E não há homem ou mulher capaz de saber se assim é justo. Nem há tempo. Bom dia , turma! Hora de começar a aula...


terça-feira, agosto 07, 2001

Nova - III
“Ah, pessoas! Gente terráquea que se entende e se basta! Gritem por mim, que nada sei, nada entendo! Digam que a chuva é chuva e nada além disso! Gente que anda e fala e vai ao cinema e não escreve no shopping, grite por mim, por piedade! Digam que é só isso, e me aquieto. Digam que ser é essa coisa de metabolizar e respirar e comer e excretar e morrer, e eu acredito e me acalmo. Mas digam! Olhem!!!”
Há de passar despercebida, junto com todos os seus gritos surdos. Há de gritar violentamente pelos olhos, em desespero. Despejar-se-á em jorros sobre o pequeno caderno novo, os dedos doendo, um choro dentro tão intenso que a Alma canse e engasgue. Porque sabe, e não sabe dizer. E teme não dizer, jamais. “A vida é tanto e tão fundo que acho injusto que eu saiba disso, pequena assim.”.
Então acalmará. Um pouco, ao menos, e finalmente. Há de desejar deitar e dormir, mas não fica bem. Chorar alto, para fora, mas não fica bem. Abraçar um desconhecido, será permitido? Certamente não... Uma senhora desconhecida, talvez, sozinha na mesa em frente. Esperando tranqüila. Abraça-la? Não fica bem. Saberá uma serenidade nova, nem triste, nem alegre. Um sossego. Um medo de interromper o jorro de palavras e perde-las de novo. Há de ser novo, tudo, agora. Poderá ir, voltar ao cinema, tomar um café. Terá o seu algo novo, de novo, e ninguém saberá. Mesmo que lhes conte.


quinta-feira, agosto 02, 2001

Nova - II
Será então uma figura atípica fazendo anotações frenéticas em pleno shopping, em plena multidão, em plena tarde de pipoca e cinema. Será alienígena no mundo de fora, cidadã de dentro, de verdades tantas que será impossível crer em qualquer coisa.
Impossível crer em qualquer coisa.
Em verdades tantas que será impossível crer em qualquer coisa, restará enlouquecer. E terá sido antes, bem antes de conhecer o mundo, a loucura. Por isso é que não há de entender o tempo, os medos humanos, as mortes, sorrisos, lágrimas humanas. Os saberes sem se saber. Os mostrares sem se mostrar. O tempo. As crianças que crescem e aprendem a sofrer. As que sofrem mesmo sem aprender. As coisas que desaprendemos a rejeitar. As lágrimas, os escuros, o negar sonhos. Então já se estarão acalmando devagar as batidas do coração, ainda loucas. A turgidez de idéias amansando. Há de arrefecer então em sua vontade de gritar, porque estará aos gritos. Em silêncio.
Uma criança se aproximará, fará uma pergunta. Duas. Responderá automaticamente, desejará ser invisível. ‘Por favor não fujam’, gritará para dentro. ‘Não me abandonem outra vez, não se escondam’. Silêncio e turbulência, estarão lá ainda. Há de olhar o próprio deserto, ainda mais vasto do que pensava, e saberá ser do deserto o choro, os gritos nas noites, nos livros lidos. Um choro que roga ‘Gritem por mim!’.
(continua)

quarta-feira, agosto 01, 2001

Nova - I
De repente há de ficar tudo claro. Claríssimo. Um ofuscamento de porquês descobertos e motivos coloridos, confusos, belíssimos e assustadores. Talvez num domingo. Sim, um domingo mágico de banalidades, uma tarde no shopping e um tumulto de idéias mudas e revoltas mal escondidas debaixo da cara de ‘boa tarde’. Ela se lembrará do caderno vermelho e de ele ter sido tão caro, tão caro. Não saberá, é claro, quando o terá adquirido, nem por que, nem se por querer, mas saberá claro que o há de pagar toda a vida. Um nó na garganta, breve virão as lágrimas. Há de precisar verte-las em letras, há de escrever. Mas onde?
Haverá... uma loja. Sim, entrará nela e olhará os cadernos coloridos enfileirados, e parecerão todos o mesmo. Há de escolher o menor de todos, o insignificante, de desenhinhos coloridos na capa que jamais se lembrará quais são, e de igual forma temerá não lembrar o que dizer se demorar mais um minuto. Coração saltando, terão voltado as palavras. De assalto, de tocaia, desleais, inescrupulosas. Soberanas. Belas, lindas, tão amadas. Suas, saberá, desde sempre. Ela duvida, às vezes, duvida com a mente. Mas Alma não conhece dúvida. Conhece sins e nãos. Alma esse amontoado de si mesma que carrega dentro e que nem sempre vê. É, às vezes é tão dentro e tão forte que não pode ser vista. Às vezes é sabido o quanto é Alma de doer e fazer doer, e fica escondida.
Há de procurar ávida o melhor lugar. Verá uma mesinha do shopping, e agora, sobre ela, o caderno novo de capa desconhecida. E é assim que se saberá, também. De capa desconhecida, o não sabido por fora e o mundo na garganta, apertando. Ah, como serão lindas e enormes as suas dores. Como serão visíveis. O de dentro de doer e fazer doer, há de saber, não fugir, não se trancar agora.
(continua)