sexta-feira, outubro 25, 2002

Ele vem, finalmente. Levanta rápida, agitada, coração quente de novo. Há tanto o que fazer. Abre as janelas ao vento e ao Sol. O Sol ainda está lá fora, incrível. Limpa, arruma, que vergonha essa bagunça. Ele vem logo, o tempo é tão pouco. O tempo é sempre pouco quando não é tempo de espera. Ele vem talvez cansado, é preciso maciez e perfume. A cama, aconchego. Ter onde ser. Incenso, tem? Ele vem, acorda logo. Ele vem talvez amargo, é preciso um doce. Aquele gostoso, que pede mais. Mais gostoso hoje, você é tão linda. Ele sempre diz linda, lembra. Linda...linda... um vestido novo? Não, aquele da última vez. Sabia última, mas pra quê falar? Perfume, o cabelo assim, como era mesmo? If I had a song that I could sing for you I'd sing a song to make you feel this way. E a primeira estrela que vier para enfeitar a noite do meu bem. Que coisa antiga, meu bem. Meu bem, ele ria. Tão bonito ele rindo. Chega de sonhar, ele vem. Música, tem? Uma bem bonita, e suave, que há tanto que dizer. Falar de monstros e dragões antigos, de campos floridos, pores-do-sol vermelhos e dourados. De nuvens lentas, chuvas e arcos-íris. Ele escolhe. Talvez o silêncio. Tão bonito, silêncio de estar junto. Ele vem talvez ferido, sabe. Não tem medo, nem pena, ele é tão grande. Tem cuidado, remédio, será que adianta?Pensa que não, sente que sim. É o que importa. Não esquece de abrir a porta, daqui a pouco ele vem.

quarta-feira, outubro 16, 2002

Eu não devia ter escrito isso.
Daqui a pouco eu deito, e choro. Agora não, é cedo ainda. Daqui a pouco a luz da rua, amarela e indiferente, entra em casa, quarto e olhos semicerrados - Não estarão fechados porque dentro de mim é tão abafado, um sufoco - então eu posso chorar.
A luz semientrando nos olhos daqui a pouco forma uns desenhos dourados nos cílios. Lembra que eu criança dizia que eram árvores? De ouro as árvores, as mais perfeitas árvores de natal. Aí chega a lágrima e a luz se desmancha em cores, um arco-íris só meu. Ninguém mais vai saber. Ninguém mais vai saber.
Nem da dor. Nem do fracasso. Nem do pesadelo. Nem da morte. Nem da vida. Nem da miséria. Nem do acaso. Nem da sorte. Nem do desejo. Nem do não.
Desistir é o pior de todos os pecados.
Daqui a pouco eu deito e o mundo fica tão grande, tão imenso que pesa, sufoca e não posso respirar. Levanto e choro. A música longe parece demasiadamente alegre, e me fere. Quando isso tudo passar - e passa sempre - vai parecer tão bobo. Aí eu acostumo. Aí é como se fosse assim mesmo. É, a vida é assim mesmo. Ainda bem que eu tenho as árvores de ouro.

terça-feira, outubro 15, 2002

Talvez tenha sido há tempos. Muitos anos. Talvez a noite passada. Penso que não faz diferença porque há histórias que não têm começo nem final. Outras só têm final. O lago brilhava anoitecendo, refletindo uma lua em forma de sorriso. Lembro que pensei em como era bom a lua sorrir, independente de quanto eu e você pudéssemos chorar.
-Você é sem máscaras...
-Não sou sem mascaras todo o tempo.
-Usa máscaras pra mim, às vezes?
-Não. Você também não usa máscaras comigo, usa?
Não usávamos, e era lindo e também doía muito. Não sabíamos ainda que era dor, inocentes demais. Sabíamos um pouco, sem muita intensidade pra que não doesse mais do que pudéssemos agüentar. Na nossa opinião agüentávamos tão pouco.
- Se você fosse mergulhar, e tivesse vários lagos disponíveis...
Você riu meio de repente, como uma luz no meio da noite, e brincou:
- Eu mergulharia no menos gelado.
Veio o vento, e primeiro eu gostava. Meus cabelos se agitavam, daquele jeito que você achava bonito.
- E quanto à visão que pudesse ter ou não do fundo? – eu insistia em falar sério, sempre. Percebi seu riso arrefecendo ao olhar o fundo, invisível de noite apesar das águas cristalinas, que já se agitavam também ao vento fresco de quase tempestade.
- Se o fundo estivesse cheio de caranguejos, eu ia preferir mergulhar no que dá pra ver menos...e muitas pessoas são assim. Preferem que os outros usem máscaras, porque pra eles é mais confortável não ver os caranguejos.
Agora era eu quem ria, meio divertida, meio aflita, o barco balançando:
- Mesmo que o fundo esteja cheio de jacarés?
Tínhamos um pouco de medo agora, e era muita angústia aquela preocupação de um com o outro, e não consigo mesmo. Sufocávamos de amor e cuidado, não chorávamos por medo de fazer chorar, mas tínhamos tanta verdade que de nada adiantava. Os remos não comandavam o barco, brigavam contra as suas mãos. Mesmo assim sua voz era firme.
- Às vezes a gente encontra jacarés por aí também. Nesse caso, é melhor ver logo.
Um remo afundou. Olhei bem nos seus olhos investigando o pânico.
- Se você mergulhar num lago turvo, e depois num lago límpido, vai perceber q no lago turvo o mergulho não foi tão delicioso porque você estava tenso com medo dos jacarés – eu tinha muito medo, mas estranhamente sabia que você encontraria um jeito - você me dá um mergulho bom porque sei onde estão os caranguejos...
- Mas às vezes ver demais o fundo pode não ser confortável. Ei, eu não tenho caranguejos! Rimos um riso meio ansioso. Seus braços doíam na luta com o único remo, que acabou inexplicavelmente partido em dois. Eu me equilibrava com esforço, arregalava os olhos à procura dos seus.
- Depende do mergulhador – eu era medo e riso, tremia e confiava.
- Não sou um bom mergulhador, as pessoas me assustam. Você é uma boa mergulhadora.
O vento se multiplicava em mil jatos. Segurávamos firme, sem falar por um tempo que pareceu que jamais terminaria. Meu maior medo era que você desistisse, eu continuava e sabia que não estava fazendo mais do que manter a sua luta. Só sua.
- Então porque é que mergulha em mim?
- Porque você me assusta, mas eu não consigo fugir de você – agora seus olhos me olhavam fundo, já não importava a tempestade, o medo havia sumido - acontece as vezes. Até tento fugir, mas não adianta...
- Como das águas onde mora a sereia?
- Não sei da historia da sereia – rimos, o vento acalmava, estávamos à deriva.
- Precisa conversar mais com gente velha...
- Então espera aí que vou procurar uma velha – nos abraçamos de um jeito único, perdidos um no outro, e esperamos. A noite foi longa, o vento vinha e nos assombrava, assobios de fantasmas da infância. Choramos em silêncio, tentávamos parecer seguros. Não ia durar para sempre. Não durou. Disso tudo a lembrança mais forte é a de que estivemos juntos. Sempre.