terça-feira, janeiro 30, 2001

Pois muito bem, pois muito bem... E dizem (dizem se diz quando se quer dizer algo sem que se diga que foi você quem disse, entendeu?) que é o leitor que faz o texto...será?

Dúvidas doces são sempre deliciosamente bem-vindas, mas apesar de deliciosas são de difícil manejo, têm muitas cascas, alguns espinhos... por isso é que alguns as rejeitam. Vocês não têm idéia da quantidade de dúvidas que é jogada no lixo todos os dias. Mas como não são perecíveis, algumas são reaproveitadas, e recicladas. Claro que perdem um pouco do sabor, mas ainda assim são de valor considerável.
Então eu pensava de novo nesse negócio de o leitor fazer o texto... Ora, será que uma mesma pessoa pode fazer um texto ter dois ou mais sabores simultâneos? Descobri que pode, ao menos se for assim, doidamente limitado em letras e raciocínios como esta que vos escreve.
Duns tempos pra cá, desde o advento de “Chat Room – o livro” (juro que conto o que é a quem perguntar, caso não saiba) , resolvi sentir-me escritora, e (a doçura de ser primitivo, mais do que a pretensão de sentir-se escritor) ler com os olhos de quem escreve os livros nossos de cada dia. Sabe quando você aprende a pintar, e olha uma tela pensando nos pelinhos do pincel, na qualidade da tinta, na técnica utilizada? Ou quando assiste um filme pensando na iluminação, ou no que quer que tenha um filme? Poizé.

Ler um livro pensando em como o sujeito o escreveu é curiosamente inssosso. É não viajar nele, não se deixar levar, não flutuar em palavras, não se emocionar. De repente não é mais a magia, mas a técnica, e eu ali tensa com aquele calhamaço de papel offset 100% reciclado que pra mim nem tinha gosto de livro. Foi bom pra você?
Resolvi despir a aprendiz e deixar nua a alma, que assim é que ela sempre foi. Comecei de novo, sem mais olhar na direção das câmeras ou do de trás delas. Comecei de novo olhando na direção do cenário, entrando nele, em imagens, sons, cores, cheiros, sabores tantos, e sem me preocupar onde ou quando ou como o autor os colocou lá.

Certamente dessa maneira fiz a viagem que autor nenhum faz em sua própria obra. A viagem do leitor. O Jorge Luís Borges, numa palestra recentemente publicada em livro, diz assim: “Como sabem, eu me aventurei na escrita; mas acho que o que li é muito mais importante do que o que escrevi. Pois a pessoa lê o que gosta – porém não escreve o que gostaria de escrever, e sim o que é capaz de escrever.”

Escrever é, de certa forma, abrir mão da viagem. Eu pensava que era o contrário, e talvez muitos pensem assim, também. E é claro que posso estar errada, caso exista o certo e o errado quando se fala de sensações, ou de sentimentos... O fato é que, já há uns três livros lidos (ou melhor, já há todos os livros que li, desde o primeiro) não consigo fazer mais do que saborear, degustar, usar e abusar de minha própria imaginação atrelada à do autor. E ainda não encontrei forma mais deliciosa de olhar a palavra escrita.

Só que agora tenho um objetivo não atingido...
Não aprendi ainda dessa vez como se escreve um livro.
Será que não? ;o)
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segunda-feira, janeiro 29, 2001

É engraçado, estranho, diriam, mas cultivo mesmo o hábito de conversar comigo. O mais interessante é que essas conversas são tão mais intensas quanto menor é o meu nível de consciência da realidade. Isto quer dizer que, se acordada, divago banalidades, e quando dormindo, não sei, que quase nunca me lembro do que sonho.
Mas existe um alpendre, um estado de subconsciência mole e tépido, uma água morna densa crescente, de luzes difusas e cores amortecidas. Um estado de inatingibilidade tal que é possível somente aí, no acordando e no adormecendo, estar a sós com esse eu que tão pouquinho conheço.
Em noites agitadas é mais rico, que se repetem tanto as passagens até que eu me aprenda um pouco. As lembranças não importam, que sejam fragmentadas e esmaecidas ao intelecto, mas dentro sei que sei mais. Lembro no entanto, fragmentada e esmaecidamente, de de mim mesma ouvir sobre escrever o que sou. Ora, escrever o que sou é coisa que faço de sempre, de há muito. Mas agora era escrever o que sou em grandeza e diversidade, e rio. Como se Alma, aquela fictícia dos meus escritos loucos, viesse alma verdade a me ensinar enquanto subacordada. E me fala de grandezas e diversidades enquanto o tudo que me conheço dentro é de um pequeno e monótono flagrante, e tão contado. Rio.
Entendo ao lembrar assim pouco - e lamento tanto o não poder escrever dormindo - que eu-Alma me fala, e tem falado, a respeito de grandezas várias, inerentes ao humano, e esquecidas. Penso, recordo, comparo e ainda que não conclua, registro, tanto do que tenho felizmente tido ocasião de trocar com amigos sobre o humano. Amigos me são, muitos deles eventualmente, muito poucos quase sempre, mas todos professores de vida. E tem sido assim, muito. Falar da natureza humana, de mazelas e medos, e encontros. Aprendo nessas horas sobre homens e mulheres, e amar ao outro e a si mesmo, e viver, e construir, acertar e errar. Imagino que seja esse mesmo o motivo de existir uma humanidade assim, coletiva e diversa, para que aprendamos com o diferente.
E atino agora, claro que não inicialmente, mas um novamente com ênfase no novo, que desses aprenderes acolho fragmentos imperceptíveis, como minúsculos fios dos quais teço verdades íntimas enquanto converso longamente comigo mesma.
- Oh, que lindo isso que teces! - é de fato coloridíssimo e luminoso.
- Lindo e difícil, mas vale tanto a pena! Aceita mais um pouquinho? - São dúvidas doces, muitas sem resposta, mas saborosas, e eu aceito.
E é mesmo vasto e diverso o eu. Os eus, e falo de mim mesma porque é a mim que tenho acesso, é a mim que posso expor. É de grandes poderes, de saberes antigos e não reconhecidos. É de belezas muitas sufocadas, porque ininteligíveis, que tememos o que não entendemos. É de solidão melodiosa e brilhante, e gelada e dura. É de dores muitas, secas, encolhidas.
E assume formas as mais estranhas o eu, ao outro. É de música o de uns, de imagem o de outros, o meu de palavras, como tantos, de sentimento amorfo o de outros. De alguns é casa quente, e alimento, de uns provisão, de outros riso e gracejo, de outros lamúria e despojo. Há os de muita matéria e vazio, raso-estéril por querer desconhecido. Há profundos tanto que insondáveis. Há céus vastos e abismos. Cada qual único, múltiplo, multifacetado. Há que se não surpreender, e caso surpreso, há que se não afastar de susto, que também somos de muito carecer...
Por isso são tantos os choques, tamanhos os gritos, os medos. Sabemos pouco. Aprendo e conheço de tanto, tantas vezes, e é tão pouco. Mesmo assim prossigo, até um dia vencer o que temo, o que não posso. Ou até ser vencida.
Felizmente esse é o único medo que não conheço.

sexta-feira, janeiro 26, 2001


----- Original Message -----
From: Lilian Wing
To: Bluechairy
Sent: Wednesday, January 24, 2001 9:15 PM
Subject: De príncipes e grinaldas de hera


Então vou escrever para vc, afinal...
E não se trata de resposta... É uma carta, de verdade! :o)
Já reparou como as cartas são mais valiosas do que as respostas? Será que são, mesmo? Bem, ao menos eu prefiro receber cartas do que respostas. Mas isso não quer dizer que eu não vá ficar olhando pela janela, de vez em quando, observando se não vem chegando o carteiro, viu?;o)

Olá, queridíssima... como está?
Sei que nos falamos há pouco, e sei que não estamos em nossos melhores dias, mas tudo é tão variável, né? Talvez menos em uns, mais em outros. Já não estou muito triste, agora. Eu sou variável, muito, absolutamente móvel, mas preservo os queridos. Digo que minha mobilidade não representa risco para quem está próximo, entende? Ah, mas não é disso que quero falar.
Bem, do que quero falar mesmo? Ah, do amor...
O amor ao outro... o amor que une casais... amor romântico... Ah, como é difícil falar dele, pra mim, sabe? Já vivi um pouco mais do q vc, apaixonei-me inúmeras vezes, me feri em quase todas, e preciso confessar a vc que não conheço o amor. Não esse. E tenho que confessar mais: Vivo tentando dizer a mim mesma que o tal amor não existe. Mas no fundo ainda acredito, e continuo procurando. Por isso é que digo que não sou indicada pra falar disso, já que até agora cometi muito mais erros que acertos nesse campo.
Mas se é para falar do que sinto, falo. Acredito em duas almas lindamente jovens, e igualmente 'contaminadas' por essa coisa sem nome que a gente chama de amor. Vejo-lhes os olhos, a expressão do rosto e os gestos ao falar dessa história. De vc é como se visse de verdade, q há emoção no seu texto como em quem se vê. Portanto posso dizer, romanticamente desmiolada, que NESSE amor acredito.
Então, mudando de assunto sem mudar, vamos aos versos:

EROS E PSIQUE
Fernando Pessoa

...e assim vedes, meu Irmão, que as verdades
que vos foram dadas no Grau de Neófito, e aquelas
que vos foram dadas no Grau de Adepto menor, são,
ainda que opostas, a mesma verdade.

DO RITUAL DO GRAU DE MESTRE DO ÁTRIO
NA ORDEM TEMPLÁRIA DE PORTUGAL


Conta a lenda que dormia
Uma Princesa encantada
A quem só despertaria
Um Infante, que viria
De além do muro da estrada.

Ele tinha que, tentado,
Vencer o mal e o bem,
Antes que, já libertado,
Deixasse o caminho errado
Por o que à Princesa vem.

A Princesa Adormecida
Se espera, dormindo espera.
Sonha em morte a sua vida,
E orna-lhe a fronte esquecida,
Verde, uma grinalda de hera

Longe o Infante, esforçado,
Sem saber que intuito tem,
Rompe o caminho fadado.
Ele dela é ignorado.
Ela para ele é ninguém.

Mas cada um cumpre o Destino -
Ela dormindo encantada,
Ele buscando-a sem tino
Pelo processo divino
Que faz existir a estrada.

E, se bem q seja obscuro
Tudo pela estrada afora,
E falso, ele vem seguro,
E, vencendo estrada e muro,
Chega onde em sono ela mora.

E, inda tonto do que houvera,
À cabeça, em maresia,
Ergue a mão, e encontra hera,
E vê que ele mesmo era
A Princesa que dormia.


Quando li esses versos pela primeira vez senti raiva do Fernando Pessoa. Os ditos me confundiam, me afligiam... Eu não os compreendia com a mente, tampouco com a alma. Depois fui compreendendo, sabe-se lá se pela poesia ou pela vida, ou por ambas, que nessa vida toda procura é uma só, toda espera é uma só... só os encontros é que são vários.
Explicar um poema, amando-o, é como profanar algo sagrado, eu sinto. Sei de muita gente que o faz com maestria, poetas inclusive, mas não é algo que eu seja capaz de fazer. Conto somente o que sinto (repito?). E sei, e penso, e acho que procuramos a vida toda por nós mesmos. Ecos de nós mesmos, ainda que daquilo que não conhecemos em nós, no outro. E esse encontrar é tão longe, tão fundo... é tanta estrada e muro até que o reconheçamos, que a maioria de nós desiste.
E desistindo, tentamos que o outro seja o que não é... desejamos dele o que não sabemos. Por isso não entendemos uns aos outros. Tenho certeza de que as pessoas mais importantes em minha vida foram aquelas que me possibilitaram, ao menos um pouquinho, o encontro comigo mesma, nelas. Ah, que confusão estou fazendo, né? Mas é confuso assim, mesmo, que vejo... lindamente confuso e difícil.
Então, que haja amor, que haja medo, desconforto, confusão, mas que haja a busca, que fomos feitos pra ela. Que, inevitável, haja a ilusão, mas que saibamos lidar com ela. E que haja alegrias, muitas, sempre.

Beijos carinhosos!
Lilian

quinta-feira, janeiro 25, 2001

A poesia se apresenta para mim agora de múltiplas maneiras, em múltiplas formas; ela é alegre, mesmo que eu não o seja... Ela tem vida própria.
Posso brincar com rimas, descansar sobre reflexões, me esconder atrás de metáforas. Posso também simplesmente soltar a mente e deixar que as palavras voem, sem fim, sem finalidade, sem motivo, sem paradeiro...
E às vezes parece que nunca vai cessar.
Como se tudo em mim vertesse palavras.
E a realidade tem menor importância que o sonho...
Rio enquanto escrevo, como que sob o efeito das palavras, poesia, que às vezes dói, às vezes provoca, às vezes acalma, às vezes excita, às vezes desfalece, às vezes aquece, às vezes congela...
A poesia é mais verdade do que a alma pode suportar...
Ela é maior do que nossas máscaras.
Ela é maior do que eu, escolhendo caprichosamente entre destruir e proteger.

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- Olha e caminha, e não pares – era um vasto quente e claro, eu vacilante, olhos secos e ávidos, caminhava.
Caminhar era coisa de Alma, celebração, purgação, inevitável e sem resposta. Era preciso, eu sabia, mas sem porquê. Sentia mil longes, cansava, mas seguia o necessário de dentro, que era caminho. Mil dias e noites, ou segundos, e parei. Primeiro nada, espera, quase alívio. Já não era claro, nem quente.
Alma era sempre, e era eu. Um rio.
- Se vês, qual a vista? – Eu não sabia.
Paralisava de mil novos de ver. Um rio impensável, grande, lento. Água limpa e escura, pedras cortantes. Neguei pedras cortantes num rio, mas eram, sim, e permaneceram. Corria constante de firmeza soberana. Fresco e macio, eu o desejava em sustos e espantos.
Eram surpresas tantas que eu nem fervia. Digo um ferver novo, sobressaltado. Já contava com sustos e espantos, e os bebia. Quase amava. Alma era de poucas perguntas e poucas respostas, eu de muitas sedes e pressas. Quando havia algo a saber. Perguntava o que já dentro me era resposta. Então era um todo móvel, liso. Era o rio. Eu dizia sem certezas.
- É vista viva, fresca movediça. Negro e cinza claro-transparente. Pedra e água e som que vai sozinho e sábio.
Estranho era o rio que eu via pedra em vez de água. Pedra primeiro, ainda que fundo. Água baixa, invertida, muita, mas eu via pedra. Triste-seco, e a água ali. Pedra, água e som.
- Que vês além do que queres? Que ouves? - Fechei os olhos, ouvi.
Só agora me dava conta de que ouvia o rio, compreendendo. Fugiam palavras e saberes, compreendendo. Alma atenta, diligente, eu ia. Alma ativa, esforço feliz de efeito certo, olhava longe, o rio sumia.
E ali fiquei muito, imóvel. Era devagar o rio e o que dele se fazia em mim. Eu gastava e desfazia e amontoava como margem. Resistia menos, menos, o rio mais perto.
Lembrei do querer macio, sem pedras. Era diferente. Aquilo era vida, independente, irrevogável, cheia de duros impiedosos e desvios, mas brilhante. Desejei entrar, e sem palavras eu era dentro, mais dentro, mais fundo móvel revolto, um turbilhão. Medo de novo, água muita e rápida, o saber doído – ponta de pedra – de que é sem volta, não há volta, água medo-redemoinho, não há tempo, súplica, não há parada. Só à frente, à frente. Cansaço e choro rebelado, revolto, mais água e pedra, debater inútil. Alma olhava serena e eu precisava beber-lhe o olhar, mas sumia. Água e medo – ponta de pedra.
O tempo não é, mas passa. Raso sereno, sossego e lágrimas. Sábias inexplicáveis, vidas muitas em uma. Fim do dia. Descanso escuro.
Alma muito quieta e viva, sabendo, sabendo... E eu via, toda a noite. Escuro, e eu via claro, sorri segredos. Dos debateres inúteis e desvios, e a calma escondida, desejada, mas só de fora. Do mover sem volta e sem parada, e do saber fazer-se mover, sempre quase velho. Da vida uma, infinita aos olhos, seqüente, impiedosa e bela, do rio. Da muita impotência e do poder dormente invisível inexplorado, dos medos e esconderijos secos.
Amanhecia quente e novo, o vasto era meu, mesmo que eu não o quisesse. Mas queria. Caminhei.

terça-feira, janeiro 23, 2001

É tanto a dizer, que nada digo.
Bem, na verdade digo. Mas digo menos do que quero, digo diferente do que quero. Durante os dias em que estive imersa na estória que eu narrava, tinha o tempo todo algo a dizer, por mais que já tivesse dito. Escrevia a qualquer momento, carregava o lápis e o papel como quem carrega remédios. Escrevia muito, louca e longamente.
Estranho isso de a obra já existir dentro do artista muito antes que ele a perceba, a entenda e a execute. Mas é mesmo o que me parece, quando atento para a forma pela qual o meu texto fluía para o papel. Inteiro, seqüente. Um só, como a teia que a aranha fia e mesmo que ninguém entenda, ela entende, ela sabe. Eu sabia o que gerava, sabia o que nascia de mim de forma tão doce e dolorida que muitas vezes me levava também as lágrimas e o sono. Era catarse.
A compulsão – e já não vejo compulsão como algo a ser combatido, em muitos casos – havia mudado de objeto, desde meus tempos, aparentemente tão distantes, de internauta compulsiva. Eu precisava do meu texto, aquele que estava em mim, precisava que viesse à tona e saísse, precisava das letras novas e vivas que eu vertia como quem respira. Não há nada de que me lembre ter precisado tanto. A compulsão pelas palavras havia tomado a frente de todas as outras. Eu não precisava mais de ponto de apoio algum, não precisava mais de muletas. Eu sabia voar.

Rio de Janeiro – 24.01.01

Não há necessidade de som ou imagem, nenhum gesto, nenhum sinal. É saber simples e fundo. É Alma.
Nada se fala ou pensa, e vou. E ir, eu sabia agora, é muito mais e muito menos do que falar ou pensar. Para onde não sei. Para longe ou para dentro, não sei. Sei que vou, somente.
Alma em silêncio, e não por falta de palavras, que sobram e transbordam . Já há muito, desde antes que eu pudesse me lembrar com a mente, conhecíamos o desnecessário de palavras, ainda que preciosas fossem. Também o era o silêncio. Silêncio de aprender e acariciar. Compartilhar silêncio era de se aprender muito, e aprendêramos muito. Havia também o desnecessário de luzes, de saberes, de imagens. Como um escuro de aprender, de explorar, um silêncio escuro de ser muito, e muito dentro. Alma me ensina o silêncio e o escuro às vezes, e essa é uma delas.

- Tens medo? – E era um escuro grande e fundo, e silêncio, e cansaço, e vida pouca, e vazio. Quis saber se era tudo eu. Se era só eu. Eu tinha medo.

Olhei apenas. Medo e ousadia. Alma sorriu. Mergulhei.
É um lago, o fundo, busca por ar, um tubo até à tona. Vivo e atento, e móvel, e humano, e não-eu. Mas traz um ar raro, inconstante, por isso o amo.Estou asfixiando, tenho medo de morrer. Preciso rastejar no lodo do fundo do lago, à procura do tubo. Móvel, insólito, fugidio, às vezes não posso alcançá-lo. É como se brincasse, e eu prevendo mil mortes, morrendo todas de me ver asfixiar. Às vezes o encontro e respiro. Só o suficiente para sobreviver, mas sem alívio, sem conforto. Aflição entranhada, constante – de sufocar e de respirar – de não saber quandos, não saber porquês. Profundo escuro silêncio, quero fugir. Mas há o tubo, e não o deixo. Rastejo e o busco, e sofro, e grito. Há um de fora, um de cima, e também o desejo. Grande e amplo, e som, e movimento, e vida rica e cheia. Mas não o sei, e é mais medo. Fracassei.

- Por que te prendes ao fundo? Por que te escondes? – Era só voz, eu não a via.

Baixei os olhos, raros. Só os baixava em raras horas, e quase nunca diante de Alma. Mas esconder era coisa que sabíamos muito, e foram muitos sóis e luas, muitas palavras, e eu sabia. Víramos sonhos e delírios, temores tantos e tão frágeis que estilhaçavam, e não havia do que fugir. Dissecáramos horrores e medos, descobríramos o enfrentar, o mergulhar. Superáramos o esconder. Eu negava tudo agora, e esquecia e regredia e reassumia mazelas antigas e me envergonhava. Retornava agora a um escondido trêmulo, vacilante. Minha voz pingava lenta.

- Não posso – Não sabia mais nada.

Alma sabia, alma sempre sabia. E era de mostrar e ensinar, e por isso era Alma. Fora era onde eu ia, onde eu queria, mas não o suficiente. Era água, espelho, vidraça de prata fria, reluzente. Era luz forte e macia, difusa e boa. Círculo, caminho invisível, querer, procuras muitas instigantes. Era temor também, vida de temor e prazer. Som de pássaro e vento. Um tudo maior do que eu podia entender, mas entendia.

- Vem e olha – e eu entendia

O de fora, perto e difícil, o caminho, a coragem. O sair de mim. Não era a hora.
Agora era de ver, de crer, não de agir, e aquietei. Haveria o tempo de ser, e era certo. Eu já sabia o voar de fora, e ainda não voava. Agora eu sabia o nadar de dentro, e o faria sem ajuda, muito cedo, muito logo.

Eu aprenderia a deixar de amar as dores.

segunda-feira, janeiro 22, 2001

Enquanto tento falar de palavras, meu assunto preferido, volto ao tempo em que surgiu a idéia de escrever um livro. Lembro-me da história mais marcante, desses tempos. Eu contara a um amigo virtual, posteriormente real, que viria a ser meu parceiro na construção dessa estória, uma experiência que eu havia vivido na faculdade de Biologia.
Era o terceiro período da faculdade, e estudávamos Anatomia humana, praticando em cadáveres conservados em formol. Dissecávamos as diversas partes do corpo, identificando órgãos, vasos sanguíneos, nervos, ligamentos... e a cada unidade estudada tínhamos provas, teóricas e práticas. Chegou o dia de uma prova prática a respeito do pescoço. Eu havia dissecado durante semanas o pescoço de um dos cadáveres, e agora devia provar aos professores que sabia o que havia feito. Chamada por ordem alfabética, a letra L nunca que chegava! Tensão, dor de cabeça, de estômago, tremores, frio e calor. Quanta bobagem, era só um pescoço! ‘Lilian!’ , lá fui, em pânico. Perguntas várias, acertei, errei, e o mestre me pede para identificar, no meio do mafuá, o NERVO VAGO. Ah, era a última questão e eu precisava acerta-la! Cara de quem sabe é fácil fazer, mas, onde estaria o dito? Pinça em punho, aproximo-me do cadáver e toco um feixe de ‘coisinhas compridas’ que passava pescoço abaixo, em busca de algo que eu pudesse chamar de nervo vago. Nem vi no que esbarrou a ponta da pinça, o mestre decreta: “Está certo, pode ir.”. Não sei até hoje a localização exata do nervo vago.
Ríramos da história, que eu usava para descrever a minha sensação diante do talento para a escrita que ele identificara em mim sem que eu mesma o compreendesse muito bem. Eu escrevia, e pronto, e não tinha a menor idéia do estilo, da qualidade, das minhas possibilidades. Meu amigo, que eu já chamava de chefe, dizia “Está certo, pode ir”, e eu ia! Não, na verdade ele dizia “Pode vir”! Por isso eu já nutria por ele um sentimento engraçado, meio submisso, meio possessivo, que me fazia ouvir intimamente os versos de “To Sir, with love”, cada vez que conversávamos.


CHORAR

DEIXA-ME CHORAR PALAVRAS.
CHORAR IDÉIAS, QUE ADOEÇO!
DEIXA-ME ASSIM DOENTE,
INDOLENTE, CHORAR MEU POEMA.
DEIXA-ME ,QUE GRITO ALTO
E ASSUSTO GUARDAS ,SENTINELAS.
SENTE QUE É MEU VÕO DÉBIL
DE POUCA ALTURA E MUITO CUSTO.
OUVE O SILÊNCIO ,MINHA VERDADE.
DEIXA-ME CHORAR VERDADES
FEIAS E DOCES E QUENTES.
E NÃO ME SOCORRA A NÃO SER
QUE EU PEÇA TEU NÃO SOCORRER.
06.12.00


VAGAS

AINDA VAGA A ALMA, VAGA DE INQUIETUDES,
PLENA DE SOMBRAS E DESTINOS, PRENHE DE FUGAS E VAZIOS.
AINDA VAGA PORQUE VIVE, VIVA, ÁLGIDA E ARDENTE,
E MENTE E MORRE, E VOLTA E VAGA.
AINDA SONHA A ALMA, EMBORA ATÉ RESISTA
VELHA DE HISTÓRIAS E PESARES VELHOS... DE ERAS ESQUECIDAS
AINDA SONHA PORQUE ESPERA, GRITA ERROS ESTRIDENTES
E VAGA, E VOLTA, E CEDE, E SONHA.
10.11.00


ALARME

PAREM TUDO!
TENHO UM POEMA NOVO.
VEM NASCENDO, CHEGANDO...
PAREM AS MÁQUINAS!
PAREM MÁGOAS E MALES;
PAREM MEDOS E MODOS;
PAREM A MÚSICA!!!
SILÊNCIO...
TENHO UM POEMA NOVO.
NÃO DEIXEM QUE FUJA,
NÃO DEIXEM QUE ESMAEÇA,
NÃO DEIXEM QUE ENVELHEÇA.
SÓ ENVELHECEM OS POEMAS
QUE NASCEM MORTOS.
09.11.00

sábado, janeiro 20, 2001

É tanto o que dizer, tanto o que contar... tanto e tão mais profundo o que se sentiu, a cada vez que se sentiu... A história por trás da estória... coisas da vida, não da profissão. Coisas da alma, das asas. Coisas que só se entende quando ouvidas ou lidas ou experimentadas de dentro para fora.
Vou contar, sim, e contar é nesse momento até mesmo quantitativo, já que posso enumerar e numerar cada um dos desertos que já conheci nessa vida, cada uma das sedes que senti ao atravessa-los, cada temporal que me fez tremer sem frio, cada curva, cada noite, cada eclipse... Vou contar o que quero que saibam todos aqueles que como eu acham que a esperança é o que salva a alma, e não a paixão.
Mas em todo caso é essa uma historia de paixão, ainda...
Sou uma escritora hoje?
Não o era há alguns meses atrás. Não no sentido literal (literário?) do termo, já que a escrita e as palavras sempre me acompanharam como anjos da guarda... ah, os anjos. Anjos, asas e vôos, e o fascínio do aprender a voar... Escrever é respirar, e caso eu tenha sorte, é voar também.
Narro uma viagem, uma grande viagem de volta, não sei exatamente de onde, mas sei que cheguei, ou ao menos estou muito perto disso. Tenho a alma na ponta dos dedos, e escrevo. Tenho coragem de sobra, e por isso escrevo. Tenho pra contar a mais bela das histórias. A história de um encontro.


Rio de Janeiro - 19.01.01

Agora era um pássaro na janela.
Minha janela era dura de grades e dores, mas ali estava ele. Gostoso, espalhado, criança, um todo breve e cheio e assustadoramente meu. Não sei se em som, imagem ou cheiro, mas eu sentia Alma. Dúvidas eram um sempre, mas havia saberes que não as tocavam. Este era um.
Eu sabia quando era Alma, e ela estava ali. Não no pássaro. Alma era, e eu era feliz por isso, por saber isso. E era a pequenez pulsante, quente e frágil na janela, longe quilômetros, e eu querendo... querendo...
Lembrei do querer de Alma. Ela mo havia mostrado uma vez. Não pudemos vê-lo todo, assim grande, passeávamos simples sobre ele, sem rumo. Querer claro, macio e quente, ele não terminava visível. Eu sabia de Alma que ele terminava na morte, por isso não víamos. Mas era tão lindo que eu quis deitar-me nele.

- Não podes, que ele estraga! Hás de mover-te nele, mesmo lento.

Agora eu movia, e me olhavam , ambos. Havia música ,luz, e tudo me atravessava, fluido. Havia chamado e envio, e eu era medo e querer. Eram olhinhos miúdos, os do pássaro, sem sombras de saberes velhos, inúteis. Eram puros, me abriam. Caminhei muitos dias em direção à janela. Alma sorria, falava de vôos e eu fingia não entender. Medo era longe, e eu nem lembrava.

Moveu-se o pássaro, e eu sumi (som de fogo extinto).
Pássaros voam, pensei. Pensei o frio das mãos, frio de mil desejos sem fundo, de tempos tão antigos que ainda nem eram, e não o toquei. Olhei tão macio quanto um toque, raro como o raro de estrela nova. Ele gostava. Sorria e contava sem palavras histórias dum nascer muito alto. Havia som nos olhos, e era ‘vem!’, mas temi. Alma não sorria agora; olhava serena, e era quase corpo.
Quente de sol, ou de sangue, não sei. Sei o queimar, o marcar. Alma alegremente desconfortável. Eu sabia muito a cada pouco, eu crescia, móvel e forte. Movia ritmo e tato. Buscava e achava, e era sem fim. Querendo...querendo... ar sólido, o tempo não era ainda, éramos. Forte e perto, grande, fundo e perto...

Ouvi cigarras, entardecia. Tarde era susto e pressa, voltei. Cigarras chamando, escândalo, Alma silenciosa, eu contendo mil gritos. Ele voou quente como minha lágrima.
- É seu – Alma sabia que eu não precisava de mais do que isso.
Adormecemos um vôo fofo, de nuvens quentes e doces certezas. Eu o veria de novo ao acordar.

sexta-feira, janeiro 19, 2001

Juninho às vezes me parecia o mais esperto dos moleques. Onze anos, sorridente, simpático, extremamente repleto de palavras e caras e bocas de adulto, mas numa ‘adulteza’ tão doce que parecia o meu próprio lado criança.
Debruçou em minha janela um dia, interrompendo-me no sacrossanto dever/direito da escrita, ao qual adquiri o delicioso hábito de me dedicar todos os finais de tarde. Amigo de minha filha, parecia ter igual prazer na conversa dos adultos (ao menos desta ‘adulta’ aqui) quanto nas brincadeiras de criança. Já havia ficado meu amigo também.
E com que prazer interrompi meu trabalho naquele dia... Juninho me instruía nas relações travadas dentro do grupinho de pequenos que costumava brincar em frente ao meu portão. Contou-me da fúria das mães em defesa das crias, rebatendo a minha argumentação de que ‘Toda mãe é furiosa’ com um devastador ‘Mas você não. Você é muito legal!’. Eu tinha mesmo que gostar daquele moleque...
E nesse mesmo dia dissertávamos sobre os conflitos de criança, e sobre a choradeira comum nesses momentos... Ele deixa escapar a pérola:
-Engraçado, Lílian. Eu nunca vi um menino, mesmo de três anos, chorar sem motivo. Mas toda menina, até ‘grande’, vive chorando! Não entendo isso.
Quando algo me põe pra pensar, como que a dissecar uma dúvida em todas as suas possibilidades de resposta, ou de geração de novas dúvidas, digo que esse algo me prendeu os olhos. Pois bem, aquele esboço de homem típico me havia prendido os olhos. Quem disse que um homem precisa ser adulto para não entender as mulheres?
Narrei para mim mesma, em forma de texto escrito, as divagações de Juninho, mas não consegui pensar muito sobre elas. Guardei-as e estive certa de que um dia as dissecaria. Cá estou.
E procuro discernir em mim o humano do feminino.

quinta-feira, janeiro 18, 2001

Discuto comigo mesma a respeito do talento, do poder e da dor que ele representa. O que é que move o artista? Os autores, por que escrevem? Que mistério é esse que faz com que qualquer artista quando interrogado a respeito de sua arte, de como ela acontece, responda com um ‘não sei!’?
Tenho há muito tempo uma ponta de texto que se insinua e não sai, não se materializa. Expliquei hoje para mim mesma, enquanto fazíamos (eu e eu) nossa refeição de dúvidas logo cedo, que textos não são feitos de palavras. Eles as vestem! Cobrem-se delas para poderem sair na rua.
-Imagine só – dizia eu – Um texto em plena rua, despido de palavras. Que escândalo!
-Nem consigo imaginar – respondo eu – mas não deve ser bonito de ver – e rimos, as duas.
Mas é verdade. O texto existe dentro do autor, numa dimensão e numa forma que nem ele mesmo conhece. Por isso é que às vezes adoecemos de palavras, ou da falta delas. Congestionamento de idéias...
Meu texto insistia, lutava. Queria ser lido, ouvido. Queria sair. Textos podem ser muito rebeldes às vezes. Então ele vagava por toda a minha alma, abria e fechava as portas com um barulho terrível, agarrava-se às grades – infelizmente ainda as tenho – nas janelas. Só não gritava porque os textos nus são também mudos.
E eu aflita, suplicante. Massacrada pela crise de rebeldia, a alma toda bagunçada. Eu procurava algumas palavras que acabassem com aquela tortura. Não havia palavras que servissem. Tamanho errado, modelo errado, cor errada (é, as palavras têm cores!). Tento escolher alguma coisa que sirva. Organizo, lavo, passo, componho o melhor que posso a minha produção. Não muito satisfeita, peço a mim mesma que me ajude a abrir a porta, para que ele saia. Tamanha a agitação do pobre, como a de um macaquinho numa gaiola, que até abrir a porta sozinha fica difícil, e preciso contar comigo. Enfim, conseguimos.
Observo o texto saltitar para o papel, vestido das palavras mais belas que pude encontrar. É lindamente maltrapilho aos meus olhos! Indigente como a própria alma onde nasceu. Ei-lo tão meu, e tão seu, leitor querido, que fico imaginando se, ao entrar em você, ele não irá despir de novo as palavras e descansar placidamente nalgum canto da tua alma.
E quem sabe, um dia, já recontado, refeito, renascido, inicie em você uma nova luta pelas palavras, e pela liberdade


Rio de Janeiro, 11.12.2000

Alma dormiu, e sonhou...
A caminho do sonho, ainda no meio da névoa que separa realidade de fora de realidade de dentro, encontrou surpresa um vento que falava.
- Ora, vento que canta eu conheço, mas vento que fala?
- Sim, na verdade sou um vento que pergunta. Que te faz sonhar hoje?
- Sonho dos medos da infância, das perguntas sem resposta, das urgências sem socorro. Sonho a saudade do que não sei.
O vento soprou, e carregou Alma, e eram pedras muitas, uma torre. Entardecia.
Perguntas eram sem respostas todas e se faziam ouvir feito uma cigarra que conta a outra cigarra que entardece, e a outra e mais outra conta e canta e é tanto canto que tudo que se ouve é cigarra.
Janela e pedra, e era tudo a torre.
Alma na janela espera, quem sabe pelo quê, ou por quem? Quem sabe até quando?
Que importa saber?



São Paulo - 05.01.2001

Chamei por Alma e não ouvi som algum. Havia um som que não se ouvia, fundo, tênue, e eu percebi que precisava mesmo procurar.
Sobre encontrar não sei, mas procurar é o que há muito faço, incansável, embora muitas vezes quase desistente. Se fosse absolutamente honesta – e desde há muito que o tento ser – admitiria que muitas vezes desisti de tantas procuras.
Mas dessa vez ali estávamos, eu a havia encontrado, ou ela a mim, e eram perguntas, muitas. Era assim sempre que eu a encontrava, um desdobrar de dúvidas, um conhecer tão grande que só podia ser mesmo conhecer, nunca compreender, nunca verbalizar. Eu desejava voar e não sabia por que o desejava. Eu queria saber sobre os vôos de Alma.
- Mas é claro que sei voar! Não voas?
Era a primeira vez que Alma me falava daquela maneira. Não me parecia que ela realmente o tivesse evitado até ali. Em minhas mais remotas lembranças, naquelas de quando, tanto tempo antes, eu pausava meus jogos de menina e olhava Alma, tão demoradamente quanto me permitia minha pressa de não sei o quê – e até hoje não o sei - via-lhe o rosto belo e antigo, de serenidades superpostas, não apenas amontoadas, mas trazidas de sabe-se lá onde e ali deixadas, talvez somente para que eu as visse. Essa imagem me aquietava ao mesmo tempo em que me acendia perguntas que eu imaginava conseguir fazer-lhe um dia. Não parecia, realmente que ela tivesse tido a intenção de evitar coisa alguma, talvez esperasse somente o meu momento.
Era pequena Alma, minúscula, talvez pelos muitos anos. Eu a via grande, gigantesca, e pensava ao mesmo tempo em que a ouvia, bebendo-lhe as palavras, se era assim mesmo que a viam os outros. Respondi sua pergunta com um gesto negativo muito vago e ela prosseguiu.
-Sei voar, mas não é sempre que posso fazê-lo, nestes dias... Houve um tempo em que eu voava constantemente com os pássaros, e os conhecia a todos. Hoje já não é mais assim. Há limites hoje, amarras.
Amarras me angustiavam, e Alma o sabia. Eu tinha muitas histórias de amarras e cadeias, e vazios. Momentos não vividos, coisas não conhecidas, cadeias tantas, e algumas tão minhas que era como se eu mesma as tivesse escolhido. Lamentei no íntimo por todas as amarras auto-impostas, que já sabia serem as mais duras, as mais pesadas. Alma não sorria, mas tinha nos olhos a expressão de quem me ouvia o não dito.
-Não há muito a lamentar, que muito aprendi e conheci, e posso dizer-te hoje. Voando se pode muito, se sabe muito.
Levou-me inexplicavelmente a um alto quase indistinguível, que eu já não sabia se olhava do alto de minha janela ou do alto de minhas razões e verdades, mas a verdade é que eu podia ver com incômoda clareza o que se passava com as pessoas lá embaixo. Onde era lá embaixo?
- Vês? Esta é a Cidade, estas as pessoas – mostrou sem apontar. Este é o mundo, e são estes os mundos ínfimos, infinitos de todos e de nenhum, de cada um.... Solos e fragmentos, um imenso deserto e nele grãos incontáveis e impiedosamente diminutos. A solidão era assim, múltipla.
Olhei, e nada vi. Senti-me eu mesma a Cidade. Apenas algo disforme e distante e móvel, como um formigueiro ou um mar de lava. E era assim mesmo que eu via, tendo diante dos olhos a absurda organização construtiva do formigueiro ao mesmo tempo e completamente misturada com o caos destrutivo do mar de lava, o fervente silencioso, o ininteligível.
Pensei em pedir-lhe emprestados os olhos, mas resisti, que já sabia de sua convicção férrea e tantas vezes expressa , quer em palavras, quer sem elas, de que os olhos são coisas que não se emprestam. Não por egoísmo, mas por cuidado. Alma conhecia os meus olhos, e forçou-me a usá-los em tudo o que podiam. Olhou-me apenas, e entendi. Limpei os olhos de todo o já visto. Ardiam, mas era preciso, e com esforço fixei-os de novo.
Via agora, mas ainda não compreendia. Havia naquelas imagens uma beleza fria e dolorida, um silêncio claro de neve caindo, um leve de neblina, mas de muitas cores, de prismas, arestas cortantes. Senti pena, e culpa. Quis saber do que eram todas aquelas dores, e se eram sabidas pelos que as levavam.
- Desce agora – e flutuei lentamente.
Eu era agora parte do que via. Alma não me acompanhava, mas eu a percebia, estranhamente múltipla, entre aqueles vários mesmos e repetidos que por mim passavam, senti o quanto todos somos sós, ainda que muitos. Sós em nossas convicções, que é esforço e sangria o tentar fazer-se entender, como se fazer-se entender fosse de algum proveito num mundo onde o outro é nada. Sós em nossos desejos e vontades, em nossos sonhos. O frio leve e as arestas eram invisíveis agora, mas cortavam , e eu pensava em sonhos.
Sonhos são o que há de mais solitário. Ninguém sonha junto. Compartilhamos, verbalizamos, transformamos, conduzimos, destruimos ou forjamos juntos nossos sonhos, mas não é juntos que os sonhamos. E mesmo dar a conhecer sonhos a outro, mesmo muito querido, é tarefa difícil. Conhecer é cansativo, também... é dar ao outro o lugar de centro... mas é bom, dizemos, e o buscamos, ao menos em momentos.
Quis voltar de novo ao alto de minhas verdades, mas já não as tinha. Havia olhado muitos olhos, e com olhos de ver, então não podia mais voltar atrás. Chamei por alma e não ouvi som algum. Havia um som que não se ouvia, fundo, tênue, e eu percebi que precisaria procurar.
Sobre encontrar não sei, mas procurar é o que desde então faço, incansável!