domingo, maio 27, 2001

Desenhar o cheiro daquela flor amarela lá fora. Sair na chuva de boca e braços abertos. Rir de dois problemas, talvez três. Fechar os olhos ao sol forte, pálpebras relaxadas em cortina vermelha. Investigar o paradeiro da formiga com a folhinha, de qualquer coisa muito leve levada pelo vento ou da ponta do arco-íris. Deixar o vento embaraçar os cabelos. Ouvir o barulho do mar na concha, e acreditar. Brincar de 'bem-me-quer, mal-me-quer', e acreditar só no bem-me-quer. Levar pra casa a areia do mar na pele e as flores nos olhos. Embriagar-se de água de coco e riso. Beijar como quem bebe, abraçar como quem dorme. Entregar-se. Render-se a si mesmo. Assistir reverentemente ao balé das nuvens. Caçar grilos entre as folhas de grama. Chorar sem pena, gargalhar sem censura. Ver com as mãos e os olhos. Entender com a alma. Querer sem porquê.

segunda-feira, maio 21, 2001

Não era dor. Era muito choro, quase todo escondido, sempre que dava pra esconder. Choro tão fundo que não se sabia o fundo, escondido no escuro que sempre havia sido dentro, agora mais. Era um sentir pastoso de esforço e lentidão, um estar preso – e estar preso fora sempre tão aterrorizante, como naqueles sonhos da infância, de medos e gritos que não saíam, e braços e pernas que não moviam. Um tal sub-estar que o mundo todo era longe, lá em cima, e que não chamassem porque feria.
Querer era algo antigo. Não havia, agora. Havia o que é, e é. Então, que fosse, e consentia. Com – sentia – extrema consciência do querer que não havia. Lembrava-se ainda de quereres tantos e tão vivos que queimavam e luziam e se levantavam em ondas de quebrar e espalhar e derrubar e ser, ser, ser, ser em grito ou espasmo, mas ser. Quereres velhos, perguntava-se se mortos. E morrem?
Talvez fosse dor, sob todo aquele tudo sem nome cujo nome quase se lembrava, ou inventava. Talvez fosse até grito e espasmo, mas só lá, sob tudo, fundo. E era escuro e parecia tanto com o de onde o choro vinha, então conheceu mais um braço da verdade. Sim, tinha braços, e de fato era só o que se podia ver da verdade, os muitos braços. Sua verdade de braços não tão belos quanto fortes, indestrutíveis, mas retráteis. Lá estava.
E não o queria ver, não realmente. Era feio, e não sabia por quê, já que tão perfeitas eram suas formas. Ainda assim, desviou o olhar, mas foi porque tinha o péssimo costume de partir com o olhar e tocar nas coisas, ferindo-as, ferindo-se. Ah... ar... amaldiçoou a coisa repetida e monótona de voltar sempre ao mesmo poço de ar pastoso , aquele de esforço, lentidão, e vestígio de dor funda e escondida. Encolheu-se de novo, procurando conforto na superfície de si . Fechou os olhos para deter o olhar até da Alma. Adormeceu um sorrir triste, de novo.

terça-feira, maio 15, 2001

Tudo é difícil. Árido, ao menos. Tudo de bom tem um travo ruim, como daqueles cortezinhos na língua quando a gente come abacaxi, ou o ardido na pele depois de um fim-de-semana na praia. Nada neste mundo é totalmente bom. Tá, nada é totalmente ruim também, mas disso eu falo outro dia.
Lembro de uma 'alegria difícil' que eu li da Clarice Lispector, aquela das palavras todas encharcadas de verdade, que levantam fascínio ou incômodo, dependendo do gosto do freguês. Ela - a alegria difícil - deve ser fruto de um encontro muito profundo consigo mesmo, e nem isso se sabe ao certo. Mas é assim, dual, essa tal de humanidade... tanto que não consegue ser sem ser também o oposto, pensa bem...
A óbvio-dual-humanidade faz doce com um pouquinho de sal, crê com um pouquinho de dúvida, despreza com um pouquinho de admiração e ama com um pouquinho de ressentimento. Coisa complicada esse tal de eu...
E devo estar repetindo alguém. Mas - oh, que falta me faz o monte de coisas que não li - ainda que não original, ou nem mesmo verdadeiro, garanto que é sincero! ;o)
Deve ser por isso - a dualidade - que a fé é tão difícil. Deve ser mais por isso ainda que a mais difícil de todas é a fé em si mesmo.

segunda-feira, maio 07, 2001

Era preciso acostumar. Não, era melhor aceitar. Aceitar resignadamente que havia música, e riso, e vida, apesar do escuro que era dentro. Mas a essa altura já se ocupava de outra coisa, uma idéia que lhe fugia dos olhos como um inseto, zumbindo. Já não lhe era claro se valia ou não a pena recupera-la, já que era algo como um saber, e tanto lhe doíam os saberes. Mas havia música, toda acesa e inadequada, e riso incômodo, que não se importavam com o seu desprezo, e fluíam, tépidos, acariciando ousados os ouvidos e a alma.
Fechar a janela? Era mesmo provável que ao fechar a janela não lhe chegasse mais o som aos ouvidos. Mas não seria suficiente, já que o som ainda estaria ali, no silêncio, música e riso, e escuro dentro. Como se música e riso lhe celebrassem a escuridão, sem no entanto ameniza-la. Desejou por um momento ser menos, saber menos. Era provável que todo acostumar-se, todo aceitar, fluíssem melhor sobre um saber menor. E as idéias fugindo – ou chegando? – num esvoaçar farfalhante como nunca antes havia ouvido. Ventavam-lhe no rosto lembranças velhas, planos, perguntas, palavras desconexas, mas cheias de um sentido que não podia reter entre as mãos. Voava-lhe o sentido. Já não o sentia.
Até o limite, resistia. E escondia cuidadosamente a sensação de que era capaz de resistir além dele. Afinal, que são limites? Lembrava-se claramente de tê-los estabelecido, portanto, móvel que era, bastava faze-los também móveis, e seria tudo serenidade e correção. Resistia à música e ao riso como a uma propina, e ilicitamente a invadiam, e já eram marca de nascença. Tinha ao menos um silêncio íntimo, forjado, presunçosamente inerte. Ao menos ele era seu, e o escuro. Mergulhou então no silêncio como quem explode e era tão mínimo e tão seu que todo o resto quase não existia. Celebrou assim uma solidão única e blindada, cheia de dorezinhas miúdas e miúdas vitórias. Via-se, finalmente. Era, no silêncio e escuro. Ainda que não houvesse a quem culpar.
Esperou, mesmo sem saber ao certo pelo quê.
Sabia não haver nada mais fiel que o tempo, e passou. Música e riso eram perto, passando num fluir espesso de folia de rua, escorrendo para longe, morrendo aos poucos até cessar. Era difícil saber se o cessar lento era da música ou do ouvido. Silêncio dentro e fora, finalmente. Já era hora de chorar.

quinta-feira, maio 03, 2001

Comprei um caderno vermelho. Na verdade ele de vermelho só tem a capa. Suas folhas são brancas com linhas pretas (azuis?) muito finas e eqüidistantes. Mas gosto de chamá-lo de vermelho.
Vermelho pra mim foi sempre cor de ousadia. Até nas roupas. Primeiro a indecisão, o abrir mão da discreção, cuidadosamente construído, depois o mergulho, e o não querer outra vida. Sou assim com ousadias, o medo vira vontade num piscar de olhos.
O caderno vermelho era para o óbvio: Escrever. Escrever o que quer que fosse. O mais óbvio dos escreveres. Eu precisava. Havia passado semanas fugindo de minhas próprias letras, eu que tanto dependo delas, e tanto sei disso. Vi-as ainda aqui, esperando, em algum lugar, aqui. Vi que de alguma forma era possível resgatá-las. Ousar. Não me ocorreu de início a necessidade do ousar para que eu me entregasse a elas de novo. Agora vejo o tamanho da coragem que me era exigida.
Para algumas pessoas, o escrever é de um tal abandonar-se que quase se parece com enlouquecer. Antes isso não era importante, o enlouquecer. A loucura era bela e sedutora, e eram tão mais altos os meus vôos quanto mais eu me abandonasse à sedução da loucura. Ainda é assim, ainda sei que é da loucura que partem os vôos, mas temo a ambos. Terão sido os tombos?
Ainda bem que não aprendi a fugir do que temo...
Tenha sido o que tiver sido, passei muitos dias sem as letras. Lendo, alimentando-me das letras alheias, mas sem dar voz às minhas próprias. Não quero mais assim, não quero estar protegida. Quero palavras e riscos. Letras, vôos e tombos. Minhas palavras são o melhor eu que há, não quero estar longe delas. Quero ousá-las, ousar-me em todos os meus arriscados e magníficos tons de vermelho.