terça-feira, dezembro 09, 2003

----- Original Message -----
From: Lilian Wing
To: writer2
Sent: Sunday, December 07, 2003 11:36 PM
Subject: Bolsinha e sapatos

Crônica da alma boa ou as almas boas são crônicas.

Sobreviver é fácil. Viver sim é que complica. É mais fundo, mais caro, maior, mais rico e mais difícil.

A estante:

Tem mais portas que prateleiras. Sendo assim, só se as tem acima da altura do nariz, o primeiro andar, e palmo acima da cabeça, o segundo. No vertical são três territórios, sendo o primeiro andar prateleiral do território do meio provido de um par de incômodas portinhas, que acabaram por profanar o que deveria ser refúgio de livros e produzir moradia para as tigelas de louça ganhas naquelas brincadeiras de amigo-oculto. Aquelas, sabe?

Visualize-se então um quinteto de pequenas prateleiras.

Na central os livros-chefe. Capas duras, imponentes, vinho e prata, azul e ouro, marrom e prata, verde e ouro. Bíblia, clássicos, um hinário de partituras, a "vida de Jesus" ilustrada de fábrica, e mais ilustrada ainda pelo bebê, quando meus descuidos com os lápis e canetas eram mais freqüentes porque eu não tinha uma gaveta de lápis e canetas, porque eu ainda não tinha a estante dos meus sonhos, porque ela ainda era só sonho. E o livro de nervo vago exposto à página 231.

Anexo 1: Bolsinha e sapatos prata em vestido vinho, acho elegante.

Anexo 2: Já crescido, o bebê me perguntou o motivo de a gente ter soluços, aí eu expliquei o nervo vago. Não me lembrei da figura no livro.

O porta-retrato é na prateleira da direita, segundo andar, à frente dos livros. Logo abaixo a vizinha é a garrafinha com um barco dentro que não sei de onde veio. Acho que é sempre assim com as garrafas com barco dentro, o que é estranho porque me parece que as garrafas, ao contrário dos barcos, não naufragam.

À esquerda, segundo andar, um arranjo feinho de flores desidratadas, lembrança do dia das mães na escola. Porque é que todo mundo pensa que mãe gosta de arranjo de flores?

Logo abaixo, as pílulas anti-neuras. Têm que ficar no baixo porque algumas neuras diminuem a pessoa. Geralmente basta olhar, mas numa emergência pode-se comê-las porque são de açúcar. Logo abaixo, a porta onde mora o caderno vermelho. Logo abaixo, a gaveta dos lápis. Encadeamento sólido de idéias.

Professores inexistem em novembro. Reexistem vagamente nos primeiros raios de dezembro, só se tornam palpáveis depois do natal. Acabo de incluir o caderno vermelho (e este blog) na minha lista de decisões de ano-novo. ;-)

Beijo!

domingo, novembro 09, 2003

E eu que não acreditava que história tão incomum brotasse no meio de gente comum feito eu. Eu que dizia que ‘novidade’ é substantivo feminino e é por isso que o masculino é previsível. Quis o destino, a vida, quis Deus, talvez por isso mesmo, que eu conhecesse o Adalgiso. É, Adalgiso mesmo, nome de homem para mim inédito (será esse o motivo, seu nome profético?). Contou-me sua história outro dia, num intervalo das aulas. Intrigante essa gente que aceita o desafio de começar os estudos – ou retoma-los – depois de tantos anos de ausência. Precisam de uma visão tão clara do mundo, das coisas, de si mesmos. Corajosa essa gente, e o Adalgiso. Tinha pouco mais de trinta anos, um casamento e uma filha-bebezinho, tempos atrás. Casamento moribundo. Finda a união, gritarias e descabelamentos de praxe, decidiu-se o destino do bebezinho da maneira mais inusitada: a mãe o deixando no asfalto de onde acabava de partir o ônibus com o pai, e indo embora também ela mesma.
- Como é isso de deixar no asfalto, Adalgiso? – eu pensava que era uma gíria nova, dessas que desancam os professores a toda hora, pobres ignorantes do dialeto de seus alunos.
- É deixar no asfalto, ué! Ela sentou a menina ali na rua e foi embora, dizendo que eu que desse conta dela. Aí eu voltei correndo, peguei a minha filha e fui dar queixa na delegacia.
Deu queixa, levou o bebê, pediu ajuda à própria mãe nas técnicas de manejo daquela coisinha delicada e ignorante do próprio abandono. Refez o enxoval, mudou de escala no trabalho, mudou de trabalho, perdeu noites de sono, foi ao pediatra quando necessário (“Cadê a mãe?” “Tem não, é comigo mesmo”), botou na escola na idade devida, aprendeu a achar tempo para as reuniões de pais, enfim, deu a palavra ‘filho’ um sentido até então desconhecido.
Hoje, passados mais de quatro anos, o costume é chegar em casa e encontrar uma mocinha saltitante, sorriso largo e vazio dos dentinhos da frente, que depois dos beijos e abraços vai logo dizendo, fingindo enfado: “Já sei, pai, você quer saber como foi o meu dia!”. Mocinha feliz, essa.
Diz o Adalgiso que ganhou um buquê de rosas no dia das mães, brincadeira carinhosa da família. Quase que ganha outro ao me contar essa história.

sábado, novembro 08, 2003

- Preciso conversar com você. Pode ser no domingo que vem?
Dela só me saltam claros à memória os cabelos. Muito lisos, de um castanho vivo, brilhante e úmido, sempre úmido nas manhãs de domingo em que nos víamos. Márcia era o seu nome. Minha mãe me dissera uma vez – não sei se desta fala foi que nasceu minha devoção – que sonhara desde sempre ter uma filha Márcia. Não teve por causa do aborto espontâneo de sua primeira gestação, o que a obrigou (de modo a espantar as más lembranças, acho, ou talvez os maus agouros) a sonhar para mim, fruto da segunda, um sonho novo. Perdi a oportunidade de ser Márcia então, e ganhei talvez aí uma incontrolável afinidade aos sonhos novos. Não foi mau negócio.
Mas então, dizia eu, chamava-se Márcia. Ia pelos quinze, dezesseis anos, e eu pelos doze, o que nesta fase da vida é uma diferença respeitável no sentido mais literal da palavra. Sim, porque nada mais respeitável quando se é adolescente do que outro adolescente, especialmente se for do mesmo sexo e três anos mais velho. Linda, eu achava. Impossível afirmar, já que só lembro dos cabelos castanhos, lisos, úmidos brilhando ao sol. Inteligentíssima, eu também achava. Estudava o segundo grau, tinha dezenas... Não, centenas... Não, devia ter milhares de amigos. Um dos mais chegados era o garoto por quem o meu coração saltava. Como era mesmo o nome dele?
Era o meu ídolo, a Márcia.
Não éramos amigas, exatamente. Colegas no grupo de adolescentes da Igreja, trocávamos regularmente cumprimentos amáveis e sorrisos. Mais essa: era amável. Doce, sorridente, falante, contrastante e ressaltante da minha timidez nevoenta que quase parecia antipatia quando se agravava. Agora ela me atirava o tal convite aos braços como uma noiva de antigamente atiraria seu buquê. Queria conversar. Não, não era um convite, era um pedido. Murmurei um “Tudo bem” polido, sorridente, mal contendo o impulso de sacudi-la pelos lindos cabelos castanhos para que me desvendasse o mistério que me consumia.
Seria o quê essa conversa? Um recado do 'menino dos meus olhos' (qual era mesmo o nome dele?)? Um convite para ir à sua casa? Talvez a subida ao Olimpo, o me servir de uma fatia daquela popularidade imensa. O me tornar amiga da que tinha milhares de amigos. Ah, eu não seria mais anônima, eu seria a amiga da Márcia!
Com muito custo, arrastadamente, olhos e alma prisioneiros da manhã do domingo seguinte, atravessei aquela semana interminável. O domingo raiou ensolarado, como eu previa. Saltitei para a Escola Dominical, que a essa altura nunca tivera menos importância, contando os minutos para o seu final, começo da minha nova vida. Bem antes disso, no intervalo, postei-me à frente da Márcia com meu melhor sorriso, aquele que dizia “Oi-estou-aqui-não-esqueci-que-vamos-conversar-daqui-a-pouco”. Ela veio como sempre, sorridente e amável:
- Oi, tudo bem? Aquela conversa a gente não precisa ter mais, não, ta?
- Não? – asfixiei – por quê?
- Nada, não. Não era importante.
Não era importante. NÃO ERA IMPORTANTE?!? Eu jamais saberia o conteúdo daquela conversa. Jamais soube. É assim no alto do Olimpo: Nada parece importante. Recolhi-me à minha insignificância para só bem mais tarde descobrir as minhas significâncias, algumas. Hoje sei um pouco mais sobre mim, e nada sobre a Márcia. Perdemos contato completamente pouco depois desse tempo. Embora confesse que esparsamente ainda me acometam umas velhíssimas faíscas de esperançosa curiosidade ao ver uma qualquer cabeleira longa e úmida cintilando sob um sol de manhã de domingo.

sexta-feira, novembro 07, 2003

Se o farol pudesse dormir, sonhava. Ah, sonhava. Inventava o mar feito coisa pequena e viva que se pode tocar. Inventava em sonho o mar água-viva. Como gente desse tipo raro que parece tão suave e cristalino na alma. Trans...lúcida, assim, sem segredos. Silenciosa, é verdade, só que de um silêncio tão rico que parece voz, dessa que mais encanta quando cala (há que se saber calar um poema). Aberta ousada exibida trespassada de luz e água. Viva. Leve e ágil, móvel, arisca, dançando uma dança que é só dela, inventada e não ensinada a ninguém. Só aprende quem olhar muito. Se o farol pudesse dormir, e sonhar, olhava, que olhar e ser olhado são razão de ser do farol. Olhava o mar vivo na água-sonho-viva. Água-criança sem medos, absolutamente sem medo de nada. Ou talvez amiga dos medos, água-gente que tem dentro a tal maquininha de fazer do medo força, e salta bem alto quando encara a pedra. Sempre tem medo porque água viva é igual água-água, se parte em mil pedaços no rochedo, explosão pequena de um, grande de outro. Sem medo e sem pena. Diz o mar que só podia ser perfeito o amor sem medo e sem pena. Se o farol olhasse o mar sonhado, cuidava dele com os olhos. Tem uma cara tão vulnerável a água, quando viva. Sem defesas, e tão linda. De vulnerável só tem a cara, logo se sabe. Coisa pequena e viva que se pode tocar, mas só sabendo tocar do jeito certo (sem medo). Senão ela queima (sem pena). Isso, assim é essa água viva trans...lúcida. Silenciosa ousada leve ágil imóvel arisca urticante sem medo e sem pena. Sem sentido também, talvez. Daí o fascínio, pai e filho do sonho. Só quem entende é o farol.

terça-feira, novembro 04, 2003

(para ninguém, e para muita gente)
O FAROL
O farol está diante do mar.
Não precisa de mais nada, o mar lhe é suficiente.
O farol olha o mar dia e noite.
E dia, e noite, e dia.
Lança nele uma luz grande.
Grande para o farol, pequena para o mar.
O farol não se importa, pisca.
Jamais o toca. Muitas vezes se permite tocar.
De leve, respingos saltitantes, poeira d'água.
Jamais lhe fala. Ouve sempre.
Nuns dias sussurros, noutros trovões.
Nunca o silêncio - o farol sabe ouvir.
O farol quer o mar, o mar. Mar.
Mas não saltará nele.
Embora espere, dia após dia.
Por aquela onda, aquela
Com a qual o mar o levará embora.

domingo, novembro 02, 2003

Havia sido uma tempestade daquelas. Mais uma, nem surpreendiam mais, embora ainda assustassem. Barulho de água e vento, peso do mundo inteiro sobre a cabeça. Medo. É ruim sentir medo quando não é um filme. Estavam ali bem juntos os dois, feito crianças fugitivas. Abrandavam junto com a chuva, junto com o vento, mais de resignação que de tranqüilidade. Foi então que falaram aquelas palavras difíceis, mesmo tão lindas. Ela falou em escolher acreditar. Em acreditar antes de ver, e moldar o invisível com as mãos, usando só a esperança. Ele chegava perto de entender, e logo se afastava, e mergulhava no entendimento de novo, de uma só vez, e saltava depressa para fora dele, fugindo em pânico... Ela tentava a doçura e a firmeza, juntas. Errava, tentava de novo. Errava muitas vezes porque de tudo o que oferecia também experimentava. Tentava de novo, então: Há o que se acredita sem porquê, em essência e desde sempre, como um destino, uma finalidade. Há o que para acreditar necessita de começo, e recomeço. O que se espera. Esperar também é acreditar, e ela dizia que é isso o acreditar por escolha. Acreditar no melhor porque é isso - o melhor - que se deseja. E repetia, repetia, que é aí que mora o começo do acontecer. Ele de olhos imensos, úmidos e fixos, era tão terrível isso. Tão aflitivo não ter de quem esperar a esperança que falta, porque só vem de dentro. Sim, só de dentro, ela disse. Esperança que se escolhe. Como ver as nuvens cinza e adivinhar o sol por cima delas. Pieguice, ele gritou bem alto por dentro. Só por dentro. Chuva fina, fria. Solidão muito mais do que de estar só, mas de pensar só. Ela não entende. Ele não entende. Ao menos estão ali, frente a frente, disponíveis, braços abertos, olhares macios. Ele escolheria acreditar por ela, se pudesse. Não sabe se pode. Só vai saber se tentar. Talvez tente amanhã.

quinta-feira, outubro 30, 2003

(para a Raquel)
Tudo que se oferece a alguém que chega ao mundo são desejos. Desejo paz, desejo saúde, desejo alegria, desejo um monte de coisas. É tudo de valioso que temos nós, estes que mesmo não te trazendo ao mundo ajudaram a te esperar. Só desejos. Muito sinceros e doces, alguns. Mas desejos são tão pouco, pobres de nós. Um pouco importante, um pouco precioso, é verdade. Um pouco que no fim das contas te sustenta e vivifica quase tanto quanto você a nós. Quando se chega a este mundo tão antigo e cansado o choque é tão grande que a gente nunca mais se lembra do que sentiu. O que você sente? Queria que pudesse dizer porque é como se já chegasse sabendo tanto. E devia saber mesmo a diferença que faz, porque o mundo é inteiro diferente já que agora tem você. É que junto com quem chega aqui assim, de repente, minúsculo e desprotegido, vem um imenso carregamento de vida nova. De esperança nova. Queria que pudesse dizer. Queria ao menos que lembrasse, pra mais tarde contar como pode um mundo inteiro – mundos que somos todos – caber num serzinho tão pequeno. E tudo que nos oferece por querer - embora sem querer traga muito mais - são sorrisos sonolentos e gestos e gritos valentes de conquista do seu lugar. Sim, é todo seu. Bem-vinda, vidinha nova em folha.

terça-feira, outubro 28, 2003

Fuçar pastas e pilhas de papéis esquecidos é exercício quase inevitável, sintomático, quando a gente se reconcilia com a vontade/vício/missão/necessidade de escrever, depois de meses de indolência confortável e sufocante. Pois então, dessa vez foi uma folha de bloco, e rascunhada e rabiscada em caneta vermelha a crônica de dois momentos reais transformados no texto em um. Momentos tocantes de tão simples, e talvez por isso mesmo tão marcantes.
Antes: o meu Word não conhece ‘rabiola’. Perguntou se não era rubéola. Tentei explicar a ele que o que eu chamo de rabiola é aquela linha pendurada nas pipas (papagaios?), cheia de tirinhas de papel colorido, sem a qual a pipa não pode voar, ao menos não do jeito que a gente espera que ela voe. ;-)

Finzinho de tarde quente lá fora. Embolada no fio da rede elétrica, bem na frente da janela, uma rabiola esquecida, há muito desgarrada da pipa para a qual fora feita. Agitava-se um pouco com a brisa.
-Mãe!
A mãe olhava para fora, absorta. Ficava assim muitas vezes quando aflita. Mar revolto sob serena superfície. Talvez não olhasse coisa alguma, e o olhar fosse daqueles que atravessam as coisas aos giros, retornando depois para dentro. A filha observava decidida, inquisidora, insistente, forte como só se é antes dos dez anos de idade. Era a mais suburbana das cenas, porque só no subúrbio é concebível rabiola embolar na rede elétrica. Mas nenhuma das duas pensava nisto. Não conscientemente.
Também não pensavam na solidão, nos mundos inteiros que inter-representavam, ou no tudo que se pode ou se deve ser para alguém. A mãe pensava na vida. A filha pensava na mãe.
-Mãe! Você ta nervosa?
-Tô, sim, filha. Mas já passa.
-Mas por quê?
Inquietação é coisa que não tem porquê, no fim das contas. Ao menos nem sempre tem. E nem merece. Algumas vezes ela é assim, incógnita. Chega e se instala sem maiores explicações. E ali reina, flagrante e inexplicada. E sob ela é que a gente é tomada de um tal desinteresse pelo controle do próprio destino que acaba arranjando mais e mais formas de se inquietar. Sim, prolifera-se, solo fértil que é a gente que se entende frágil. E se viver dá um trabalho danado, dá também prazer... e dor, e riso, medo e desejo, e sonho... e inquietação.
-Nada demais, amor. Umas contas aí pra pagar...
Outro dia teve um sonho, a mãe. Falava a uma platéia numerosa e interessada a respeito do seu melhor projeto de trabalho. Falava brilhantemente, avaliou. Repentinamente a assistência começou a se retirar, em grupos, feito líquido escoando do jarro que quebrou. Acordou entre lágrimas e inquietação inexplicada. O problema é o futuro, sempre... mas por quê?
-Feliz é a Wanda, né, mãe? Ela não tem contas pra pagar.
Só tem inquietação quem tem sonhos. Mínimos que sejam. A Wanda não os tinha, de fato. Doente mental, morando na rua, perambulava desde sempre pelo bairro. Conhecida de todas as crianças e da maioria dos adultos da vizinhança, agora ocupava nesta pequena família o inusitado posto de símbolo. Símbolo do que não lhes faltava, das dores que não tinham, dos sonhos que ainda – e sempre – podiam cultivar.


Felizes os pais aprendizes, e seus filhos tanto mais sábios quanto mais jovens.

segunda-feira, outubro 27, 2003

Ando investigando a vida de Dhea. Nada contra um pouco de mistério, mas cabe a todo e qualquer personagem, penso eu, o dever mínimo e irrevogável de dar-se a conhecer ao menos ao seu autor. Personagens moram nos autores sem pagar aluguel, nunca por pouco tempo, porque nunca é rápido que ficam prontos para ir embora. A maioria fica pronta um dia. Então vai, não sem deixar marcas pela casa, de desenhos a lápis de cor pelas paredes a gravações a canivete nas colunas. “Fulano esteve aqui”. Como se pudéssemos esquecer.
Dhea não. É caprichosa, e foge e se mostra. Não me permite esquece-la, nem toca-la. E zomba de mim, porque sabe que há coisas que ela entende e eu não. Às vezes aparece no meio de um pensamento que nem precisava dela. Às vezes some no meio de uma conversa lenta, difícil, atravancada, mas tão necessária. Ela não é má, é só inconseqüente.
Então passei a espiona-la. Vasculho ruas e praças em mim à procura de pistas. Interrogo meus sonhos, lembranças, idéias. Examino todas as imagens, ouço todos os ruídos. Trabalho incansável, de frutos escassos, mas tão belos. Dhea é fascinante, e sabe disso. Às vezes imagino que ela sabe sobre a minha investigação, e se diverte. Às vezes acho que ela também me investiga, e que talvez saiba mais sobre mim do que eu sobre ela. Talvez saiba mais sobre mim do que eu mesma.
Claro que é assustador. Mas o que é escrever senão coragem extrema, ou talvez loucura? Loucos não se assustam, ao menos não com o que é assustador. Então prossigo, serena e decidida. Em breve terei um dossiê completo. Ou incompleto. Sobre Dhea. Ou sobre mim.

sexta-feira, outubro 24, 2003

Outro texto esquecido... este do caderno vermelho (é, eu reli todo o caderno vermelho, sim). Engraçado um texto esquecido no caderno vermelho, porque nele é que eu escrevia os textos que não queria esquecer, ou aqueles que precisavam permanecer lembrados. O texto me lembra Dhea, a minha personagem em eterna gestação, nunca nascida. Ainda. Só lembra, porque há detalhes muito diferentes das características dela... será que esse afluxo repentino de coragem, que me fez voltar a esta página, também me trará Dhea de volta? Não percam os próximos capítulos. ;-)
Era como uma viagem, ou como uma chama que acende ou apaga. Um sair ou entrar em si, e o mundo ficava tão pequeno ou tão grande que nem tinha importância. Havia estado dentro do espelho, uma vez. Uma vitrine tão bonita e colorida, de uns luxos estranhos, mas era só o espelho o que via, infinito. A viagem do olhar não conhece obstáculos, então vai-se onde se quer, quer exista, quer não. E ia. E eram sempre lugares muito bem escolhidos, de clima ameno e cheiro bom, luzes suaves e silêncio, e nenhuma dor. Poderia passar dias em cada um desses lugares, mas raramente conseguia fazer com que a viagem durasse muito tempo. Havia a vida real, pessoas reais, sensações reais. O frio da rua, o abandono, a fome, o não.
Não parecia ter mais do que dez, doze anos. Tinha mais, não sabia ao certo quantos. Não sabia ao certo muitas coisas, talvez nada. Mas isso era tão pequeno ou tão grande que nem tinha importância.

Porque será que eu sempre termino os textos do mesmo jeito que eles começaram? Músicas são assim quase sempre, terminam no mesmo acorde... será que é isso? Ou será essa sensação de que o final do texto não chega nunca? É... não chega nunca. Que bom.

quinta-feira, outubro 23, 2003

(Para o anjinho)
Existe lágrima boa, sim, menino. Olha aqui, se é verdade mesmo que existe o bom em tudo que é ruim, que existe o ruim em tudo quanto é bom, isso ninguém me ensinou, não. Nem a vida, ensinadeira feroz. Nem ninguém, nem coisa nenhuma. O que sei, de um saber claro igual à lua cheia – tenho pra mim que se a lua fosse de saber em vez de brilhar ia ser um saber imenso, de tanto tempo que ela avista tanto lugar – lá em cima... Pois é, sei de um saber claro igual aquela lua cheia lá em cima que existe lágrima boa, sim. Presta atenção, menino, que quando a alegria é muito funda, muito quente, muito forte, grande de encher a alma inteirinha, pode até jorrar pelos olhos, viu? Feito nascente. Não, feito cachoeira. Não, feito chuva. É isso! Lágrima boa é feito chuva. Até sem cheirar tem cheiro de chuva num verão de antigamente, a terra quebrada de seca bebendo, bebendo como bebessem todas as sedes do mundo. Ávida, a festa do alívio. Até sem ouvir tem a música dos pingos no teto ou da voz querida, voz-surpresa que chega ouvido mente alma peito olhos adentro, ordenando despejo a dores e lágrimas boas. Muito quente, muito forte, tanto que não se pode esquecer nunca. Também tem o escorrer apressado e sem fúria, calmo e reto como uma bênção, aquela que faz tanto tempo se pede. E mesmo assim se duvida. E mesmo assim se sonha e sonha. E mesmo assim – ó homens de pequena fé – não se espera.

quarta-feira, outubro 22, 2003

Acho que existe mais de uma liberdade. Ora, pra mim liberdade é ir onde quiser. Mesmo assim, mais de uma liberdade, pelo menos uma de dentro e uma de fora. Mas livre não é quem pode sair? Não somente, para entrar precisa liberdade, e não ser livre dentro é não ser livre. Tipo na casa da gente? Tipo no de dentro da gente. Ser livre para ir a todo lugar dentro de mim. Ah, dentro de mim é tudo uma coisa só, acho que não tenho lugares. De onde vêm os seus sonhos? Ué, igual todo mundo, diz que tem o inconsciente, né? Taí, lugar. Ora, lugar? Pois saiba que ‘onde’ é advérbio de lugar, então se é ‘onde’ é lugar. Ih, aqui dentro deve ter cada lugar... E você os visita todos? Para quê? Não sei, visita? Não, que bobagem. Deve ser bom se visitar todo. Acho maluquice, sabe o médico e o monstro? Sei, a coisa do lado mau. É, to fora. Do lado mau? Claro, to fora. Todo mundo ta, ele é que fica lá dentro. Cruz credo, visitar pra quê, então? Pra conhecer. Só quero conhecer coisa boa. É questão de tempo, ele sempre acaba saindo. E sai como? Deve ser pelos olhos, que nem nos filmes de monstro. Sei não, acho que olho só serve de entrada. Então pelas mãos. Palavra? Pode ser. Imagem? Talvez. Som? Tudo, qualquer coisa. Boa? Pode ser ruim também, tem que escolher. A gente escolhe sempre? Não, sempre não, só quando tem liberdade.

terça-feira, outubro 21, 2003

Voltar a qualquer coisa produz reencontros de todo tipo (que bom!). Esse foi fácil, porque textos são sempre mais fáceis que pessoas. A folha estava bem aqui, escrita a lápis, ao lado do computador, na pasta de contas a pagar (Lugar ideal, esse? Também acho.). Esperou pacientemente tantos meses que nem me lembro. Sem data, sem contexto, quase sem identidade:
“Havia uma tristeza nova agora. Reluzente e fria, feito cristais de gelo. Tristeza legítima, cheia de verdades que escorriam vívidas, encharcantes. Verdade e tristeza eram a mesma coisa, finalmente. Havia agora algo de fato que contrastasse com o quente das lágrimas no rosto, que também escorriam vívidas, encharcantes. Tristeza quase construída, já que estava – sabia, sabia sim – sobre um alicerce débil de decepção porosa. Mas era, a tristeza. E a amava.
Podia olha-la de todos os ângulos impossíveis. É que os possíveis não precisam ser olhados, eram conhecidos e sabidos como se sempre tivessem estado ali. Talvez toda a tristeza do mundo fosse a mesma, um monstro-desespero enorme e invisível que ferisse de diversas formas com cada pedaço do corpo. Ou talvez fosse um prato de sopa quente, e queimasse diferente as quem mais ou menos decidisse se aprofundar nele.
Podia olha-la de todos os ângulos impossíveis. Caminhou então em torno de sua tristeza-prato-abandono, e sentia-se repleta dele, embora leve. Vapor. De cima contemplou o alaranjado de sua casa. E chorava-chorava, condensava, caía. E subia lenta, leve, vapor-redemoinho.
Com honestidade – é claro que não havia honestidade, que essa é coisa que não entra na gente, só sai – poderia admitir que não era importante. O motivo não era importante, talvez já o tivesse esquecido. Importante era só o”

Que coisa... “só o” quê? Nunca vou saber, não lembro nada, nada sobre esse texto. Ao menos sei que essa tristeza passou, já que não me lembro mais qual foi o motivo, nem quando. Eu ia terminar o texto para postar, mas preferi deixar o vazio. Talvez alguém que o leia sugira um final melhor do que o que eu faria. ;-)

segunda-feira, outubro 20, 2003

Tudo sempre volta. Ao menos tudo o que é real. Sempre volta. Os sonhos voltam, renovam-se os cenarios, o enredo, talvez. Mas la estao, de novo e de novo. Era incrivel ter sonhado de novo com os passaros. Com tê-los matado, ou tentado. Era mesmo um sonho horrivel, mas era estranho chamar de pesadelo porque nao havia angustia, nao havia resistência. O sonho fluia tranqüilo, soberano. Passaros semimortos, que nao reagiam. E aquela firmeza no proposito de os matar, sem vontade e sem sofrimento. Era preciso mata-los. Por quê? Nao importava, era preciso, por mais que ser preciso sem porquê parecesse insolito. Sem prazer, sem dor, sem nada. O nada fluia tranqüilo, soberano, e matava os passaros. Era o mesmo sonho, de novo, e sabia bem deles, velhos conhecidos. Passaros-sonhos, passaros-desejos, passaros-ser. Passaros-ser-o-que-se-é-e-nao-o-que-o-outro-quer. Mata-los era uma aniquilaçao imensa. Um autossufocar tao completo e tao duro que certamente nao seria capaz de faze-lo contra qualquer outra pessoa. Estranhamente eles, passaros, nao morriam. Nem viviam, ficavam ali moribundos, o tempo estagnado também. O sonho, antes e agora, terminava assim, como assumindo seu lugar de grito, de alerta, de alarme. Era preciso, é preciso salvar os passaros, e salva-los nem é assim tao heroico. 'E nao os matar, somente. Deixa-los ser, por mais que ninguém os queira ou entenda. Deixa-los voar, por mais que o vôo pareça dor. Por mais que seja tao desmedido o medo quanto o seria o nada reservado em sua morte. Deixar-se voar, deixar-se ser. A vida enquanto ha vida, o céu enquanto ha céu. Deixa-los voltar, bem-vindos, incômodos, vivos, ensurdecedores, férteis, ardentes, ousados. Fluir tranqüilos e soberanos. O passaro é maior que o sonho, e volta. Tudo sempre volta.

quarta-feira, janeiro 01, 2003

Esse negócio de esperança às vezes parece forçação de barra, né? Parece discurso de festa, parece que a gente nem leva a sério...Mas a verdade é que o ano novo começou, e a gente sabe. A vida ainda é vida... as ondas ainda são ondas - não é lindo saber que elas nunca acabam, e as que a gente não pular hoje estarão à nossa espera, sempre? Se a onda que eu devo pular é só minha, e me espera, é sinal que a esperança é um fato. Estamos condenados a ela.
Então a gente se renova sem querer, e sonha outra vez, e sorri por se saber amado, e vivo. Isso acontece porque o ano se renova mesmo é dentro da gente, sábia artimanha da evolução...
Que seja sempre assim, novo e feliz, todo ano. Que a coragem se multiplique, que o amor se derrame, que a esperança permaneça. Feliz Ano Novo!