sexta-feira, agosto 16, 2002

"Se eu fosse cavalo só comia flor.". Manhãzinha preguiçosa, de dentro do carro pouco interessava ver além do estritamente necessário. Mas era fato, lá estava o cavalo, plácido e indiferente, fazendo sua refeição matinal: capim.
"Por quê, filha?", questionei entre risadas, ainda mais de prazer que de achar graça. "Capim é muito feio". Felizes seríamos, filhinha, tão felizes, se pudéssemos ter somente o belo como alimento. Mas na hora não era nisso que eu pensava. Não tinha importância ali se falávamos de cavalo, menina, unicórnio ou duende. Não tinha importância se comer era para o corpo, os olhos ou a alma. Importava só o espasmo de liberdade incontrolável que nos permite aos dez anos escolher o destino de gente, bicho e planta.
Estranho isso do inconformismo. Sem perceber eu naquela hora pensava nas escolhas que eu, adulta incurável, já não tinha. Olhava a onda de estupefação na qual eu virava cambalhotas por causa daquele absurdozinho. Onde já se viu cavalo escolhendo comida, mesmo que cavalo-marionete da imaginação de criança? Onde já se viu querer só o bonito, se nessa 'adulteza' em que todos acabamos caindo o bonito é uma conquista tão árdua? Tornei-me de novo fã daquela garotinha, de todas as garotinhas, inclusive daquela que ainda sou aqui dentro, em algum lugar.
Quando criança eu li sobre o moço que queria consertar o mundo, e pensou as abóboras, grandes, majestosas, lá no alto da árvore no lugar das insignificantes jabuticabas. Era a mesma coisa agora, e para muito além do absurdo eu entendia que só é capaz de ousadia assim quem é muito, muito livre.
Depois que a gente põe uma pessoinha assim no mundo fica meio escravo genético dela. Parece que cada célula da gente se exalta, entristece, assusta, refestela nela, conforme o que salte dela na nossa direção. Por causa disso é que naquela hora eu ria inteira olhando o cavalo que, coitado, só sabia comer capim; e olhando a menina que já sabia - e agora me ensinava - que fosse imaginando, suspirando, querendo, fosse como fosse, ainda seria possível sentir nessa vida um gostinho de flor.