quinta-feira, novembro 01, 2001

Eu estava quieta, eu juro. Não tive culpa. Culpa? Como fosse imputável de culpa o leão velho que, faminto, devora um pássaro ou uma criança. Estava sendo só o que posso ser. Eu. Ser você mesmo pode ser problemático se você é alguém como eu. Quieta, sim. Imóvel. Ele veio porque quis.
Pousou feito ventinho nas pétalas. Macias suaves, que posso fazer? Úmidas, pegajosas, pousou. E foi feliz, nem adiantaria negar. Pêlos delicados e confusos, mornos de sol. Drósera. Perfume de flor porque sou mesmo flor. Pousou devagar, aberta a carapaça de besouro, espasmo alegre de asinhas transparentes por baixo. Bonito vôo. Prefiro o pouso. Invisto nele quase tudo o que eu sou.
Não fui a primeira. Não menti. Existi, somente. Não há como mudar o fato de você existir. A lei da vida é existir, e o existir é por mais tempo de quem mais forte o agarra. Agarrei, úmida e decidida. Posse de cola e surpresa. Patas, pânico. De novo o ventinho, era tarde. Não havia fuga, sabíamos ambos. Não havia vôo ou carapaça. Havia Drósera.
Não posso dizer que foi rápido, não foi. Não posso dizer que foi indolor. Foi necessário. O leão velho diria a mesma coisa, creia. E a plantinha carnívora só parece monstruosa se você se sente besouro. Não é no vôo que está o risco, e sim no pouso. A lei da vida. Por monstruosa que seja, ela é. Vida e morte internecessárias, feito vôo e pouso. Feito dia e noite. Presa e predador, afinal, milagrosa e assustadoramente feitos um só.