quinta-feira, novembro 01, 2001

Eu estava quieta, eu juro. Não tive culpa. Culpa? Como fosse imputável de culpa o leão velho que, faminto, devora um pássaro ou uma criança. Estava sendo só o que posso ser. Eu. Ser você mesmo pode ser problemático se você é alguém como eu. Quieta, sim. Imóvel. Ele veio porque quis.
Pousou feito ventinho nas pétalas. Macias suaves, que posso fazer? Úmidas, pegajosas, pousou. E foi feliz, nem adiantaria negar. Pêlos delicados e confusos, mornos de sol. Drósera. Perfume de flor porque sou mesmo flor. Pousou devagar, aberta a carapaça de besouro, espasmo alegre de asinhas transparentes por baixo. Bonito vôo. Prefiro o pouso. Invisto nele quase tudo o que eu sou.
Não fui a primeira. Não menti. Existi, somente. Não há como mudar o fato de você existir. A lei da vida é existir, e o existir é por mais tempo de quem mais forte o agarra. Agarrei, úmida e decidida. Posse de cola e surpresa. Patas, pânico. De novo o ventinho, era tarde. Não havia fuga, sabíamos ambos. Não havia vôo ou carapaça. Havia Drósera.
Não posso dizer que foi rápido, não foi. Não posso dizer que foi indolor. Foi necessário. O leão velho diria a mesma coisa, creia. E a plantinha carnívora só parece monstruosa se você se sente besouro. Não é no vôo que está o risco, e sim no pouso. A lei da vida. Por monstruosa que seja, ela é. Vida e morte internecessárias, feito vôo e pouso. Feito dia e noite. Presa e predador, afinal, milagrosa e assustadoramente feitos um só.

quarta-feira, outubro 31, 2001

"Como você cresceu, Flora!", disse diante do espelho. As crianças sempre crescem, e nunca se imagina que será tão rápido. Era certo já ao nascer que cresceria logo. É assim com algumas crianças, elas simplesmente escolhem crescer.
Algumas crescem feito balões - pensou - desses que a gente sopra e é o oco de dentro que os faz grandes. Tendo escolhido crescer no desjuízo de menina, fez-se o oco. Por isso aquele gosto de cica de fruta que não amadureceu direito. Mas por ser dentro, o oco era escuro e difícil. Coisa para não se olhar.
Nesse dia que virou noite, Flora dormiu, e acordou da realidade para um sonho que sempre estivera ali. Viu-se pequena e inadequada, como nos pesadelos antigos em que ia diminuindo e adensando enormemente até sumir, comprimida por si mesma diante de qualquer coisa imensa, coisa essa que também era minúscula.
Mas não era o pesadelo agora, não era assim que via. Via-se menina, não crescida, e só. Noite. Penumbra, e o quarto da infância. A janela sempre aberta, andar de cima, e as folhas de amendoaira dançando nela o tempo todo. As grades e o frio. Um se descobrir lancinante e incompleto, para o qual não ousava pedir ou esperar ajuda.
Flora olhou a janela para onde suas pernas apontavam. As folhas em dança-conversa que na penumbra eram como fantasmas amigos... amigos... haveria quem viesse no meio daquele escuro suave e lhe sussurrasse ao ouvido o que não poderia passar a vida inteira sem saber. Dizem que o boto lá no rio vira um moço de terno branco e chapéu e sorriso e madrugada e é por isso que as meninas esquecem que há coisas que não lhes é permitido aprender. Foi assim que a sombra clara veio das folhas e tudo aconteceu. Ela não poderia mais esquecer, nem lembrar. Mas agora talvez pudesse crescer.
Meninas nunca sabem por que choram. É por isso que choram muito, por não precisar de porquê. Nesse dia Flora chorou de vida. Quis gritar, mas não era menina o suficiente, então só chorou. Quem quer que a tenha escutado, não poderia entender. Não era necessário, nem permitido.
Nascido de novo o sol, ela voltou ao sono de realidade que a tornava grande e adequada. Voltou a ser a Flora de sempre, aquela mesma, plena e hábil em fingir que cresceu.

terça-feira, outubro 30, 2001

Borboletinha estranha aquela. Entrou sabe-se lá por onde e escolheu como campo de pouso uma parede muito branca e lisa diante da janela. Sabe-se que as borboletinhas nunca sabem onde está a janela quando é hora de sair. Só na de entrar. E isso é bom porque é como se elas fossem incapazes de ir embora. Talvez sejam. É assim com os pássaros também, mas os pássaros não têm o orgulho das borboletinhas, então assumem a impotência, debatendo-se à procura da janela, ferindo-se e agonizando a ausência da liberdade. Desta entrega as borboletinhas são incapazes.
Esta era cinzenta e triste, mas tão pequena e ágil que merecia ser no mínimo amarela. Parecia muito, muito mais pesada do que uma borboletinha deve ser. Esvoaçava rasante sobre crianças fascinadas e adultos impacientes, e retornava à sua parede branca. Era esforço, a borboletinha. Esforço e dignidade. O cinza sobre o branco, insolente. Um enorme eu-borboletinha para inveja do eu-homem.
Mantinha as asas em riste, como conscientes da expectativa geral de que se abrissem. Era cinzenta, é verdade, mas era borboletinha, e deseja-se abrir as asas de uma borboletinha mesmo cinzenta. Caminhava vacilante parede acima, fremindo as asas hipnóticas. Parecia dizer coisas com elas.
Vez ou outra deixava-se desabar, esvoaçando parábolas, voltando à repetitiva escalada até encontrar. Encontrou um sítio áspero no interruptor de luz, e foi um minuto eterno de quietude tensa, alerta e cinza. Relaxou, vitoriosa, abrindo-se por inteiro, exibindo todas as suas cores impossíveis. Depois sumiu, como toda borboletinha. Seja por vôo, seja por queda. Importa é que sumiu sem levar consigo o perplexo de se descobrir o sobre-humano em asas de inseto. A borboletinha não compreendeu e não foi compreendida. Foi só vôo, só esforço. Desafio, persistência. Foi mancha e marca, mais do que imagem. Mancha triunfal no branco covarde da parede humana.

segunda-feira, outubro 29, 2001

Precisava admitir, e admitiu. A imagem invadia, transformava, doía, indignava, escavava sem pena o lugar e o ocupava. Experimentou passar por ela, experimentou entender que era isso o que queria, mas de repente desapareceu o querer. Todo.
De repente não queria mais. Esqueceu num piscar de olhos o querer-é-verbo-transitivo-direto-quem-quer-quer-alguma-coisa, e tratou simplesmente de não querer. Transcendeu o cotidiano como quem não entende os próprios limites, e então combinou tacitamente com o universo que ao menos por um momento não haveria interação. Receber e perceber, mais nada. Egoísmo na sua forma mais primitiva. Dócil abandonou lábios e olhos àquela entreabertura infantil de que nem se lembrava mais e relaxou. O mundo então cresceu, cresceu até perder toda a importância, e veio devagar a sensação de que tudo estava mais visível, mais claro.
O mar era como se fosse todo silêncio. Encaixava-se na cena com tamanha perfeição que mal ou não podia ser percebido. E era suave carícia sobre uma areia serena e lisa. Sobre ela, a concha. Valvas abertas e vazias, ocas mesmo. Piscou os olhos ante o aparente asséptico de água, areia e concha. Dentro dela, nada além da pérola redonda e solitária.
Queria-se festiva, a pérola. Preciosa e rara, e bela, cintilante e soberana. Pérola é uma dor que foi amortecida, mas ela – a pérola – não sabia. Exibia-se elegante e deserta entre as conchas vazias, como símbolo de algo que pouco importava o que fosse. Festa de dor de pérola iludida, reflexiva devolvendo ao mundo toda luz, e era tão triste.
A vontade era golpear a areia com a mão, assim de lado e depressa, e derrota-la, e à concha, e à pérola triste, mas o combinado era não interagir. Golpearia a areia chamando o caos. O fim do asséptico. Aquela concha pérola areia água perfeita era ofensiva porque sem vísceras. Sem vida. A vida é feia, desordeira, obscena, concluiu. Vivo significa imperfeito.
Em vez do golpe que já parecia o entornar de toda tensão, o jogar fora o peso, a cura... em vez do golpe, pediu à concha que fosse menos morta. Não houve resposta porque a perfeição não responde. Virou então a página da revista onde estava a foto da pérola e tratou de guarda-la rápido, enquanto ouvia o seu nome na pronúncia gélida da recepcionista do consultório dentário.


domingo, outubro 28, 2001

Quase quatro horas, e ainda essa bagunça. Ai meu Deus, estou atrasada. Onde é que se meteu o controle remoto? Devia haver um controle do controle. Devia haver controle remoto para tudo. Hoje tem sol, pelo menos. Sem sol é ruim porque a roupa não seca, e a gente também não. Fica úmida por dentro, um frio. Vivo falando em frio por dentro, ninguém entende. Nem eu, mas mesmo assim falo. Mas o controle remoto serviria para o sol também. Para as pessoas também. Será que ele chega cedo hoje? Tem sempre tanta coisa na cabeça. Mas quando chega cedo é bom, mesmo em silêncio. Preciso mandar lavar este tapete, que poeirada. Tenho também muita coisa na cabeça, e sempre esta vontade de dizer, dizer. Ele ouve, às vezes. Nem sempre olha, mas acho que ouve. Mesmo quando não ouve, é bom ter o que dizer, e guardo feito um pão quente no bolso. Fica ali, quieto, queimando. Pra ele é bobagem, eu entendo, muita coisa na cabeça. E esse espelho, meu Deus. Odeio espelho. Um espelho nunca está limpo, é terrível. Vou botar uma música. O tempo passa tão rápido com música, acho que a música é movida a tempo. Tenho vergonha do que sinto com música, feito um gozo. Os sons vão entrando e me deixando leve, leve. Deve ser assim que se sente um bêbado. Nunca bebi. Dá vontade de beber com ele até ficar bêbada. Ele sóbrio. Nós dois trancados. Idéia maluca, nem parece minha. É essa música. Às vezes é um livro, um filme. Mas é quase sempre a música, isso de ficar como bêbada. Delírio de febre é assim, também. É como sair do chão, sair de si. Então é isso, parece doença. Tem coisas que não conto a ele, são tão tolas. Tem que consertar essa televisão, acaba pifando de vez. Amanhã termina a novela. Final feliz, já deu no jornal. Acho melhor botar lá fora essas plantas. Final feliz. Acho que nenhum final é feliz. Final feliz é um começo disfarçado. Quando tiver mesmo final, vai ser triste. É por isso que sei que é assim mesmo, quando não estou feliz. Vou fazer uma lasanha, ele sempre elogia. Acho que feliz é coisa pra se estar, não pra se ser. Instante feliz, aí sim. Depois a gente quer mais e não tem. Ninguém tem tudo, ninguém é tudo. Ninguém é todo, mas todo mundo quer ser. O telefone, é ele. Temos esta sintonia, andei observando. Era engano. Acontece. Daqui a pouco ele liga. Ta esfriando, melhor fechar as janelas.

sábado, outubro 27, 2001

Era menino ainda. Não sei o quanto. Vagava pela praça, pés descalços, à procura de tudo e de todos, sabedoria irresistível, própria de menino. Olhos meninos que se apertavam ao sol, insistindo em ver o castelo e o dragão de nuvem que depressa viravam navio e cavalo. Na pressa própria dos meninos, esquecia de parar de olhar o céu, e andava assim de olhos no céu e pés no chão, até que esbarrou no velho.
Mal se deu conta do menino, o velho. Tinha olhos velhos que se perdiam no chão, se recusavam a ver mais do que o chão e os pombos nele. Dava milho aos pombos, que comiam numa algazarra suave, nuvem fluida e estabanada. Para eles o velho não existia, para o velho o menino não existia, Tudo só existia para o menino.
Ficaram ali sentados lado a lado, olhando os pombos, e eu tive vontade de ter o poder de olhar através dos olhos de outra pessoa, como se me fossem lentes, e descobrir o que no olhar diferenciava o velho do menino. Olhar de ver o mundo, a vida, o tempo, a infância, a idade.. Os olhos de menino eu conhecia, carregava-os ainda em algum lugar. Lembrava deles às vezes, até os usava. Sorri ao pensar que podia tê-los para sempre. Será? Será que a idade dos olhos é a gente que escolhe?
Passado o tempo que devia passar, o menino levantou, olhou o velho bem nos olhos e ficou esperando até que ele fizesse o mesmo. Fiz. O menino sorriu e correu, levantando os pombos em revoada, sob o olhar atônito do velho. Levantei então, com dificuldade, e sem pressa, deixando sobre o banco o saco de milho e toda a velhice que havia acumulado em pouco mais de três décadas de vida. Acho que vai demorar para que eu envelheça de novo.

sexta-feira, outubro 26, 2001

Sic visum Veneri – III
“O pássaro grande pousou entre as grades e olhou, olhou. Havia os olhos do cãozinho, e brilho, e bruma. Entrou, e o cãozinho de tão feliz não pensou no perigo...”
“O pássaro grande pousou entre as grades e olhou, olhou. Entrou, e se feriu no brilho cortante das pedras-brinquedo. O cãozinho rugiu um cuidado de leão, e o pássaro grande virou medo e dor, preso pelo olhar.”
Desviou os olhos de novo, com indignação. Havia cinzas esparsas no chão. Cessara o vento, estava frio agora. Traiçoeiro o tempo, fascinante, cheio de caprichos. Volúvel, macio-quente, inebriante, perfumado, álgido, incerto. Eram assim as forças da natureza, dignas de raiva e paixão. Tentou por um segundo encontrar a raiva de novo, necessária. Não foi difícil.
“O cãozinho fechou os olhos libertando o pássaro grande – ou talvez os tivesse fechado para chorar – e logo percebeu dolorido a sua ausência. Talvez tenha ido embora para sempre, talvez volte, talvez esteja ali ainda, entre as grades, olhando... Mas será preciso abrir os olhos para saber.”
Desejava tanto que não fosse aquilo. Nada mais oportuno do que o equívoco agora. Era verdade, contudo. Agora pior, era verdade conhecida e manifesta embora não fosse ser mesmo compreendida por mais ninguém. Não precisava. Não podia. Arrancou célere as folhas de papel como quem arranca ervas daninhas. Despedaçou-as uniformemente, com calma. Pousou-as delicadamente no chão, ateando-lhes fogo amarelo silencioso. Ofuscava um pouco, mas aquecia. Voltou ao papel, e permaneceu ali então por longos minutos, olhando o branco como que esperando que nele surgissem por si mesmas as palavras que não conseguia dizer.

quinta-feira, outubro 25, 2001

Sic visum Veneri – II
“Era grande de olhar, o cãozinho. Um grande que não se explicava porque mora no olho de quem vê. Viam-no leão. Temeram-no e o isolaram com grades cinza, fortes e frias. De vez em quando alguém mais corajoso enfiava a mão assim entre as grades e o tocava. Então ele exultava porque podia voltar a ser cãozinho, e pulava, e avançava, e era essa mesma alegria doida de cãozinho que levava embora o corajoso, tomado de pânico. Ele não ficava surpreso, só triste.”
Como podia saber tanto? Quem lhe dera esse sobrevoar almas e histórias, como se as tivesse vivido mais do que seus donos? Esculpir palavras ao longo do tempo torna a pessoa uma espécie de bruxo. Aprendera a ler pessoas em vez de palavras, também, e agora era como parir com as mãos. Parir era proibido dizer. Disse gerar, então. Mas não eram novos os seus filhos-palavras. Talvez fossem-lhe mesmo anteriores. Não importava. Havia começado, haveria de terminar.
“O pássaro grande pousou entre as grades. O cãozinho olhou, somente. Seu olhar atraía em vez de amedrontar porque era olhar de cãozinho e não de leão. Das grades cinza para dentro era tudo cinza, bruma escura encobrindo as pedras com que o cãozinho costumava brincar. É, sim. Ele brincava de cortar pedras, que ficavam muito brilhantes e afiadas. E não parecia um brinquedo perigoso, porque ninguém jamais atravessaria as grades.”
Sentiu raiva, então. Dos outros e de si mesmo. Raiva desse irresistível fazer-se compreender. Raiva de compreender. Sentiu de repente falta da covardia que nunca tivera, pássaro de voar e ousar... e pousar. Ensurdecedor o atropelo de palavras. Chocavam-se como nuvens em céu de criança, com estrondo de multidão em pânico. Pânico.

(continua)

quarta-feira, outubro 24, 2001

Sic visum Veneri – I
Já não era a primeira vez. Virara uma espécie de ritual involuntário aquele sentar ou deitar diante do papel em branco, lápis na mão, e só. O olhar enchendo o papel de palavras que a mão não recebia permissão para escrever. Era como uma invalidez.
Irritava-se com a invalidez. Repudiava-a como se assim fazendo fosse possível expulsa-la como mulher adúltera. Perda de tempo. Do que era incapaz não seria outra coisa, não por força. E de certa forma sabia disso, soubera sempre, mas admiti-lo era como trair a si mesmo.
Permanecia ali então por longos minutos, olhando o branco do papel como que esperando que nele surgissem por si mesmas as palavras que não conseguia dizer. Mas como, se nem mesmo ousava pensa-las, fortes que eram? Dura a vida de quem é todo palavra. Mais dura ainda a vida de quem é todo palavra que precisa ser lida. E foi. E quase se arrependia de ter-se feito ler. Palavra lâmina que fere os olhos e quebra à toa. Sentia culpa, e medo, e dor. Pobre grandeza inútil vulnerável. Viu-se bicho em seu medo-fúria, e só então pingaram palavras.
“O cãozinho rugia feito um leão. Desde muito cedo em sua vida ele aprendera que deveria rugir alto, para enfrentar os perigos ou sugar do próprio rugido a coragem para enfrenta-los. Rugir feito leão exigia muita força de um cãozinho, e isso o fazia muito frágil.”
O vento incidiu sobre as folhas de papel, levantando-as numa dança ruidosa como festa, ou como gargalhada debochada. Destruiu com a mão espalmada aquele acinte do papel, coisa de quem sabia mais do que devia. Ignorou com esforço o próprio desconforto. Havia mais o que dizer.

(continua)

sábado, outubro 20, 2001

O que tem que ser, tem que ser. O barulho aumentará, ensurdecedor. Encurralado, nem ousará pensar numa maneira de sair. Estranhamente, estará sereno, quase conformado. Há de suportar até o limite. Onde será o limite? Será como se tudo e todos ao seu redor tivessem como principal objetivo daquela dia o tatear e testar os seus limites. Como, se nem mesmo os conhece? Impossível saber. Depois serão perguntas. Débeis, e por isso mesmo agressivas. Tudo o que há de contrário ao que se deseja fazer é agressivo, e não desejará perguntas. Não desejará ouvir, nem responder. Faltará algo, um vazio, um silêncio, um não estar ali. Faltará algo que ainda esperará ter.
Serão pessoas, de verdade. Mas se recusará a olhá-las, a reconhecer-lhes a existência, por mais barulho que lhe produzam na alma. Sim, porque a essa altura o barulho já não lhe ferirá só os ouvidos. Entrará como punhal, doído, agudo, e se alojará no fundo, explodindo múltiplo em direção a um monte de idéias que estarão tentando dormir. É provável que se estilhacem, em vez de acordar. E farão falta. Será que as terá de volta?
Sorrirá amarelo. Não importará, desde que sorria cordial e educadamente. Todos sorriem amarelo, em todo o mundo. Tem uma teoria que explica os sorrisos amarelos. É que todo mundo permanece assim trancado, defendido, desprovido de janelas, e de fora cola um adesivo-sorriso, que amarela com o tempo. É necessário isso porque o sorriso de verdade é muito difícil. Sorrirá amarelo pensando em tudo o que é seu e não tem.
Trocará o direito de ensimesmar-se por monossílabos. Ouviu inúmeras vezes isso de 'o que é do homem, o bicho não come'. Agora terá dúvidas. Sempre as tivera, enfim. Mas o fato é que em algum lugar lá no fundo tem como que a relação de tudo de seu, seja hoje, seja em qualquer tempo. Então há de se esparramar nela em silêncio, e por frações de segundo poderá senti-la tanto que tudo em volta sumirá. Ter alguém ou alguma coisa é quase o mesmo que entregar-se a ela, então há de sentir-lhes o toque, o tato, como se de fato lhe ocupassem espaço dentro e existissem naquela mesma hora e lugar. É assim que se faz presa daquilo que deseja, prazerosamente.
Desta vez será algo lá dentro de si, algo sem nome. Embora tenha o hábito de dar nome a tudo que tenha ou sinta, haverá algo nesse tudo que de tão repentino e ofuscante não merecerá nome. Já o tivera, lembrará vagamente. Quando criança, talvez. Um jorro de si, que embora forte e impetuoso é também doçura e silêncio. Um riso frouxo, tolo, despropositado, desprotegido. Rir-se.
Dizem 'rir-se', os portugueses. Ouviu assim a primeira vez ainda criança, e achou engraçado. Rir-se é engraçado , mesmo, mas ao mesmo tempo tão apropriado. Fluir no riso, feito aquele solzinho na janela. E saberá ser possível um fluir assim porque se saberá leve, tão leve quanto os grãozinhos de poeira flutuando no raio de sol.
Passarão tempos, eras, e suportará heroicamente. Abraços no final, acabará logo. Despedidas, votos, comentários simpáticos. Muito, muito tempo depois, o silêncio do quarto, enfim. Livre. Ao menos até o próximo aniversário.

sexta-feira, outubro 19, 2001

Estava tudo cinza quando a mulher olhou o céu. Não que olhasse querendo ver alguma coisa nele, que sabia desde criança que céu cinza é só cinza, e pronto, não tem nada que alguém queira ver. Mas olhou. Aquele olhar de se tentar fugir pelos olhos, mesmo que para o cinza. Se ela pudesse – e podia – ir com o olhar e se perder naquele nada, então estaria provado que nada mais tinha importância. Só o olhar.
Uma nuvem cinza no céu cinza se destacava um pouco pelo fato de ser mais clara e se curvava lânguida ao longo de meio céu, esguia e preguiçosa. A mulher tratou de vê-la arco-íris, sentindo-lhe as cores que não tinha. Era mulher. Mulezinha, dizia-se. Mulezinha era adjetivo do tempo de criança, que se dizia dos meninos que choravam ou tinham medo. Mulher parecia então um menino que chora, e tem medo. Era assim que se sentia, mulezinha.
Enquanto seu próprio olhar tirava do cinza o arco-íris que a nuvem não era, ela pensava. Pensamentos de mulher. Não que ser mulher lhe desagradasse. Não que perder aquele sangue, parir aqueles filhos, chorar aqueles vazios, querer aquele... aquele... aquele o quê, mesmo? O que queria a mulher, afinal? Talvez quisesse só saber o que queria. Enfim, não que tudo aquilo a fizesse desgostar tanto a ponto de enfastiar da feminilidade. Era dela. Não seria mais do que mulher, nunca.
Deixou que os olhos caíssem do céu, pousando sobre umas árvores solitárias e uns pássaros – machos ou fêmeas? – que voejavam em torno delas. Procurou de novo o seu arco-íris cinza, já não estava. Fora com o vento, talvez. Veria outros se quisesse. Talvez não quisesse mais, não tinha importância. Não ser mais do que mulher também afinal não tinha importância porque assim como árvores, pássaros ou homens ela era só o que era. Nem mais, nem menos. Não lhe fora dado florir feito árvore, voar feito pássaro, enrijecer feito homem... Riu, pensando que enrijecer era privilégio e obrigação masculina. Aquela dureza desgovernada, parecendo nunca caber onde e quando se manifestava, fazia-lhe uma inveja divertida. Porque tinha controle sobre a sua não-rigidez, seu choro, seu medo. Amolecia e se fazia fluida e frágil como quem dançava, e não como quem caía. Sentiu-se bela, então, quase mágica. Não mais do que mulher. Mais do que mulezinha.

quarta-feira, outubro 17, 2001

“Preciso de um tempo”, pensava, sem dar à palavra ‘tempo’ sentido inteligível algum. Um silêncio, talvez. É que o barulho de dentro era tanto – pensando bem, não maior do que sempre fora, alma-tempestade – que cansava. E sabia o necessário do silêncio como de alguma forma também sabia ser o mar capaz de se cansar das ondas. As mesmas ondas de sempre, de novo, lua após lua. Precisava da calmaria.
Era possível que tempo fosse somente tempo, não tivesse enfim sentido algum. Mesmo assim era necessário porque o sem-sentido também era necessário, e até então insuficiente. Significar também cansava.
Talvez então tempo fosse o mesmo que vazio, que o cheio de dentro era tanto – pensando bem, não maior do que sempre fora, alma-matriz que não entende vácuos – que pesava. E sabia o necessário do vazio como de alguma forma também sabia ser o chão capaz de se cansar dos frutos. Os mesmos frutos de sempre, de novo, chuva após chuva. Precisava de seca.
O tempo era de tão etéreo quase inexistente, e fugia, fugia... Parco, pobre, sempre. Não havia tempo no sempre. Não havia tempo no nunca. E precisar de tempo angustiava porque não se o podia reter. Só se aprisionava o tempo na memória, por isso era sempre mais confortável o passado. O hoje doía fértil e urgente e era difícil olhar o dia seguinte sem espanto. Espanto do inevitável.
“Preciso de um tempo”, e sabia não haver nada mais implacável – nada mais fiel, também. Cria no tempo ainda que não existisse, já que só a ele era permitido ser tão inexistente quanto infalível. Talvez por isso o desejasse tanto, mesmo sabendo que jamais o possuiria.

sexta-feira, setembro 21, 2001

Quando eu era criança, e quando eu era adulta, e quando eu não sabia se era uma coisa ou outra, ou a mistura dos dois, eu ficava imaginando se seria possível atravessar o espelho, e viver a vida invertida que havia lá dentro. Depois eu entendi que os espelhos não podem ser atravessados por quem se faz enxergar neles. Depois eu descobri que podem.
Dentro do espelho é tudo sem sentido. Sentido é só fora dele, embora dentro sinta-se tudo. Só que não se sabe. Saber é secundário. O sentido. Os sentidos têm focos invertidos, e o mais visto é o que não se viu. O mais ouvido é o silêncio. O mais degustado não tem gosto. O maior cheiro é só uma lembrança. Dentro do espelho é impossível compreender, por isso é tudo tão claro e límpido.
Voa-se, lá dentro. Fácil, fácil. E longe, que é logo ali. Mergulha-se fundo atrás de tesouros que não há, e se os encontra. Brilham. Mas não se traz o tesouro, que é só lá que ele vale. Há liberdade dentro do espelho, e a prisão é fora. Ninguém vai ao espelho se não inteiro. Finge-se. No espelho se é uno. E muitos, mas completo. Ambíguo, inversamente paradoxal.
Pode-se cobrir o espelho, e ele ainda é. Pode-se - não se deve - quebrá-lo, e ele ainda é, múltiplo. Pode-se ignorá-lo, mas nunca esquecê-lo.
Espelho não tem vontade. Tem só verdade.

sexta-feira, agosto 31, 2001

Talvez, talvez

Talvez venda e não cortina

Talvez tênue luz de lua,

Ora nova, ora cheia

Talvez prosa, talvez verso

Talvez tempo, talvez sorte

Talvez sol...

Talvez som. talvez silêncio...

de certa só a incerteza.

quinta-feira, agosto 30, 2001

Que coisa terrível, e deliciosa, essa de pensar sobre o amor..
Lembrando da paixão (tesão) da língua. É intenso, tá vendo? O humano é intenso, ávido, sôfrego. Os sentimentos humanos, então... é claro que não é o ideal. Ideais são as borboletinhas amarelas que esvoaçam sobre o mato aqui no meu quintal. Levíssimas, inexigentes, suaves, quase sonhos. Mas pousam quando não vemos, e morrem, também.
Ser leve então, eu penso e sinto, é escolha. É exercício e esforço de deixar o outro voar quando o queremos nosso (e é nosso também o vôo, muitas vezes, que lindo). Porque queremos ser barco errante - e como erramos! - e queremos o outro, confortavelmente, porto. Sim, porque o pouso inevitável da borboletinha amarela é sobre. E há que existir um 'sobre o quê'. Mas há que se ser leve por amor, também, que conhecemos os males do se deixar pesar em amores sobre alguém. Então é, repito, exercício e esforço. Mas vale a pena.
Quando um texto me move muito, é quase físico um sentimento assim: as palavras dançando em mim como peixes na água. Totalmente minhas, mas ainda assim difíceis de capturar. É como se eu tivesse - e tenho - muito mais a dizer do que digo, não por vontade. É uma angústia que vai do doce ao ácido corrosivo. Hoje é doce.
É assim diverso o sabor da tal angústia, penso, porque é diversa a solidão também, e ela é meio que reguladora das emoções todas. Então o que é compartilhado é sempre doce, até a dor ou a dúvida. O sentimento/idéia/pensamento compartilhado brilha, e seduz, e ainda que angústia é mais e mais desejado...
Parecem irmãs a solidão e a liberdade. Gêmeas, talvez. Talvez uma só. E não se deseja a solidão. Na verdade o próprio desejar a liberdade tem suas nuances de escravidão, se olharmos direitinho.
Ah, o que dizer do amor que ainda não tenha sido dito? Esse que é leve e livre e lindo, mas tão pouco consistente quanto a água que se beba para matar a fome, ou sobre a qual se tente caminhar. Esse que é refúgio, abrigo, mas envolvendo agrilhoa, alimentando sufoca. Assistia dia desses um vídeo sobre o nascimento dos animais, e era tão estranho o modo como a maioria deles não se desfaz em amores pela cria, a não ser talvez através daqueles cuidados indispensáveis à sua sobrevivência no começo da vida. Depois, é adeus, você pode sem mim.
Nem sei se digo o que acho, ou se acho. Mas disse o que veio à mente, deve ser o que sinto. E, creia, eu sinto muito melhor do que sei.

quinta-feira, agosto 23, 2001

O conto se chamava ‘Perdoando Deus’. O problema da Clarice Lispector é que as letras dela batem na gente e tiram lá de dentro outras letras, que começam a pular em desordem barulhenta, e quando se percebe já não se está mais lendo, mas escrevendo com os olhos. Era só o que eu precisava. Escrever com os olhos. Não que seja ruim escrever com as mãos, mas neste caso – e tanto o tenho feito, prazer abafado feito sexo com camisinha – não se voa, e é voar que me interessa, sempre.
Então as letras me faziam escrever com os olhos, e fiquei feliz porque nestes escreveres é que tenho certeza de poder achar as palavras que ando procurando, ávida. Dependendo de para quem ou sobre quem se escreve há muitas, muitas palavras que não servem. Muito secas, frias ou quentes demais, preguiçosas ou excessivamente ágeis. Andam caprichosas as palavras, onde irão parar? Eu procurava palavras fortes e doces, que portassem mesmo não ditas um certo ar tarado-elegante que forjado – e eu nem sabia que sabia forjar – me prendesse na pele aquele olhar que eu já sabia atento. Minha pele palavra. Mas quais?
Estariam certamente nalgum escrever com os olhos. Ah, sim, o conto era ‘Perdoando Deus’, e nesse livro eu vinha marcando as páginas com uma etiqueta, que eu colava na página seguinte à que eu lia. Dessa vez, terminado o conto anterior, eu a colara sem querer sobre ‘Deus’, no título que eu já sabia qual era. Mesmo assim cedi ao ritual de ler o título, levantando cuidadosamente a etiqueta e lendo ‘Deus’. Tratei de devolve-la ao lugar, e agora era só ‘Perdoando’, e eu também gostava. Prossegui. Mas aí já não lia.
Quando as palavras – certas palavras – chegavam , acordavam as palavras de dentro, que iam umas acordando as outras num efeito dominó ensurdecedor, e nada saía ou entrava, palavras congestionadas e eu ali, só sendo feliz. Tratei de fechar o livro, mesmo temendo pelo tudo que se abria em mim, mas eu sabia que era tarde e inevitável. Elas estavam aqui, serenas e cúmplices. Soberbas, autoritárias, insuportáveis.
Cheguei a sentir o sabor das palavras novas. Vi suas formas e cores diáfanas esvoaçantes. Quase pude toca-lo. Fugia. Dançava, forte, doce. Tentei detê-lo ainda. Sorria. Soube mais do que já sabia, que o olhar atento o é, sempre. Mesmo sobre palavras não ditas.

quinta-feira, agosto 16, 2001

Encontro - II
... Foi o que aconteceu. Emergi das minhas divagações e do ofuscamento gostoso daquele sol laranja e do milhão de estrelinhas da água bem a tempo de ver que aquela silhueta azul-acinzentada que se movia resolutamente na minha direção, embora ainda examinasse todas as mesas ocupadas à minha procura, era ele.
Nem foi difícil reconhecer o sorriso fácil, quase juvenil, no rosto maduro. Apesar de nunca o ter visto nem por foto, não foi difícil. Nossos sorrisos foram como abraços, e começamos – ou retomamos – uma conversa longa, a mesma de sempre, e sempre nova, dessas raras e vivas que jogam fora o tempo e trazem à tona a nós mesmos, tanto que chega a assustar. Mas já éramos versados nelas, assustávamos bem pouquinho, ao menos eu imaginava.
Tínhamos hábitos estranhos, ambos. Perguntas, respostas, até discussões pouco usuais. Por isso não estranhei quando ele quis saber exatamente qual dos carros estacionados ali em frente ao bar era o meu. Conversa fluida, interminável, e, descartado o tempo, era noite. Tão estrelada quanto havia estado o mar no pôr do sol. Meu gentil acompanhante pediu a conta, e me conduziu em direção à avenida, de modo que parecia que íamos em direção a um passeio à beira-mar, mas que terminou bem em frente ao meu carro estacionado. Ele bem conhecia o meu hábito infantil de dizer ‘fica!’, insistente, não importava o motivo da partida. Antes que eu pudesse dize-lo, então, me disparou um beijo na testa, entrou no táxi que eu nem havia visto parado ali no sinal e desapareceu. Sem que eu me desse conta, havia ficado em minha mão um envelope, e dentro dele, previamente escrita à mão, com caligrafia primorosa, a crônica de um encontro ao pôr do sol, exatamente como havia acabado de acontecer.

quarta-feira, agosto 15, 2001

Encontro - I
Olhei de novo na direção do sol, que era também a da rua, e da praia. Olhos muito apertados, eu divertidamente fingia me incomodar com o ofuscamento provocado pelos raios que invadiam os meus olhos, o bar e todo aquele fim de tarde quase mágico. Lá longe, no mar em frente, brincavam na água um milhão de reflexozinhos saltitantes como estrelas, espécie de presente de despedida daquele sol que daqui a pouco iria dormir.
Lembrei sem querer das aulas de ciências, aquilo de o sol não ir dormir, porque ele é uma estrela, e a Terra é quem gira, e a rotação e a translação, e que estrelas são gigantes incandescentes, e não reflexozinhos saltitantes. Professoras de ciências têm um quê de sádicas, como aqueles cirurgiões que manipulam bisturis sem pena sobre a carne das pessoas. Uma vez eu havia saído tristíssima da aula, ainda no primário, quando Dona Nancy contou à turma que o coração não continha sentimento algum, e a gente amava, tinha medo, ficava triste ou feliz era com o cérebro. Imaginei que horrível seria desenhar cérebros atravessados por flechas, em vez de corações, e escrever neles o meu nome ao lado do daquele menino lindo com quem eu tinha certeza que ia casar um dia. Odiei Dona Nancy e as aulas de ciências por duas longas semanas.
Havíamos optado, ainda por telefone, por uma mesa na calçada. Por isso não importava que o sol invadisse o bar, já que eu o esperava do lado de fora. Esperava o moço, que o sol eu não precisava esperar, havia estado sempre ali. O moço também, pensando bem... e eu pensava. As pessoas passam por este mundo em busca de afinidades, e quando as encontram é que se dão conta de que elas sempre estiveram ali. Certamente passam por nós, ou muito próximo de nós, pessoas com quem temos afinidades grandes que jamais serão descobertas. É terrível, mas o bom que é quando as descobrimos compensa boa parte da frustração.
O moço não estava atrasado, não. Jamais se atrasava, pelo que eu podia supor. Metódico, organizado, gentilíssimo, socialmente correto, como eu costumava dizer, debochadamente carinhosa. Carinhosamente debochados, éramos assim. E eu havia chegado minutos mais cedo justamente porque sabia que ele não se atrasaria, e queria a cena assim. Eu ali, bem acomodada, e ele chegando, procurando...
(continua)

quinta-feira, agosto 09, 2001

Parecia água. Filtrava os raios de sol do mesmo jeito, aquele jeito maroto que a água tem de fazer as coisas parecerem maiores do que são. Ou de fazer com que pareçam estar onde não estão. No vidro fechado parecia água porque a tampa impedia que se lhe escapassem os vapores, o cheiro forte de formol que por associação era capaz de denunciar a morte antiga que ali dentro estava guardada. O feto jazia imóvel ali há pelo menos dez, doze anos, e muitas vezes despertara nos observadores mais imaginativos conjecturas sobre como seria ou onde estaria este menino – sim, era um menino – hoje, se tivesse permanecido dentro da mãe, e nascido, e crescido...
Mas não havia sido assim. E ali estava ele, objeto de observação cuidadosa de professores e de alunos adolescentes do segundo grau. Aliás, parecia até contraditório, levando-se em conta a maioria, relacionar a observação cuidadosa aos adolescentes. Mas era assim, especialmente agora.
Não devia ter mais do que quinze anos a moça, ali acocorada atrás da mesa do professor, onde ficavam as prateleiras baixas com os vidros de formol. Entre as duas mãos o vidro com o menino, quase colado ao rosto, e o olhava, absorta. Cena nem tão incomum se o olhasse, como quase todos que o faziam, com curiosidade. Mas era olhar de derrota. Parecia que ela conversava com o menino, que o olhar a havia transportado para dentro do vidro e ela ali nadasse com ele, dolorida. Não percebia os colegas, não ouviu o sinal indicando o início de uma nova aula, não viu a chegada da professora nem a perplexidade dela, menos por presenciar aquela cena do que por compreende-la. Plenamente.
Segundos infinitos se passaram entre a entrada da professora e a volta da aluna ao seu lugar. Enquanto aguardava que a moça lhe permitisse o acesso à sua própria cadeira, a professora teve a lamentável sorte – há sortes lamentáveis, como aquelas que nos fazem saber o que preferíamos ignorar – de ler claramente a história que, já escrita, se mostrava no olhar da moça. Não tocou na aluna, não disse nada, e inexplicavelmente nenhuma outra pessoa naquela sala o fez, ao menos que tivessem percebido. Passado o tempo necessário para que se concluísse em ambas o que precisava ser concluído, a moça voltou para a professora uns olhos enormes, imensuráveis, brilhantes, profundos como abismos. Conversaram longamente, trocaram confidências, choraram juntas, tornaram-se cúmplices, tudo isso em não mais do que três segundos. Coisa de mulher, diriam os que o pudessem perceber, que há palavra que só elas têm, lembrança, história que só elas vivem, dor que só elas sentem.
E não há homem ou mulher capaz de saber se assim é justo. Nem há tempo. Bom dia , turma! Hora de começar a aula...


terça-feira, agosto 07, 2001

Nova - III
“Ah, pessoas! Gente terráquea que se entende e se basta! Gritem por mim, que nada sei, nada entendo! Digam que a chuva é chuva e nada além disso! Gente que anda e fala e vai ao cinema e não escreve no shopping, grite por mim, por piedade! Digam que é só isso, e me aquieto. Digam que ser é essa coisa de metabolizar e respirar e comer e excretar e morrer, e eu acredito e me acalmo. Mas digam! Olhem!!!”
Há de passar despercebida, junto com todos os seus gritos surdos. Há de gritar violentamente pelos olhos, em desespero. Despejar-se-á em jorros sobre o pequeno caderno novo, os dedos doendo, um choro dentro tão intenso que a Alma canse e engasgue. Porque sabe, e não sabe dizer. E teme não dizer, jamais. “A vida é tanto e tão fundo que acho injusto que eu saiba disso, pequena assim.”.
Então acalmará. Um pouco, ao menos, e finalmente. Há de desejar deitar e dormir, mas não fica bem. Chorar alto, para fora, mas não fica bem. Abraçar um desconhecido, será permitido? Certamente não... Uma senhora desconhecida, talvez, sozinha na mesa em frente. Esperando tranqüila. Abraça-la? Não fica bem. Saberá uma serenidade nova, nem triste, nem alegre. Um sossego. Um medo de interromper o jorro de palavras e perde-las de novo. Há de ser novo, tudo, agora. Poderá ir, voltar ao cinema, tomar um café. Terá o seu algo novo, de novo, e ninguém saberá. Mesmo que lhes conte.


quinta-feira, agosto 02, 2001

Nova - II
Será então uma figura atípica fazendo anotações frenéticas em pleno shopping, em plena multidão, em plena tarde de pipoca e cinema. Será alienígena no mundo de fora, cidadã de dentro, de verdades tantas que será impossível crer em qualquer coisa.
Impossível crer em qualquer coisa.
Em verdades tantas que será impossível crer em qualquer coisa, restará enlouquecer. E terá sido antes, bem antes de conhecer o mundo, a loucura. Por isso é que não há de entender o tempo, os medos humanos, as mortes, sorrisos, lágrimas humanas. Os saberes sem se saber. Os mostrares sem se mostrar. O tempo. As crianças que crescem e aprendem a sofrer. As que sofrem mesmo sem aprender. As coisas que desaprendemos a rejeitar. As lágrimas, os escuros, o negar sonhos. Então já se estarão acalmando devagar as batidas do coração, ainda loucas. A turgidez de idéias amansando. Há de arrefecer então em sua vontade de gritar, porque estará aos gritos. Em silêncio.
Uma criança se aproximará, fará uma pergunta. Duas. Responderá automaticamente, desejará ser invisível. ‘Por favor não fujam’, gritará para dentro. ‘Não me abandonem outra vez, não se escondam’. Silêncio e turbulência, estarão lá ainda. Há de olhar o próprio deserto, ainda mais vasto do que pensava, e saberá ser do deserto o choro, os gritos nas noites, nos livros lidos. Um choro que roga ‘Gritem por mim!’.
(continua)

quarta-feira, agosto 01, 2001

Nova - I
De repente há de ficar tudo claro. Claríssimo. Um ofuscamento de porquês descobertos e motivos coloridos, confusos, belíssimos e assustadores. Talvez num domingo. Sim, um domingo mágico de banalidades, uma tarde no shopping e um tumulto de idéias mudas e revoltas mal escondidas debaixo da cara de ‘boa tarde’. Ela se lembrará do caderno vermelho e de ele ter sido tão caro, tão caro. Não saberá, é claro, quando o terá adquirido, nem por que, nem se por querer, mas saberá claro que o há de pagar toda a vida. Um nó na garganta, breve virão as lágrimas. Há de precisar verte-las em letras, há de escrever. Mas onde?
Haverá... uma loja. Sim, entrará nela e olhará os cadernos coloridos enfileirados, e parecerão todos o mesmo. Há de escolher o menor de todos, o insignificante, de desenhinhos coloridos na capa que jamais se lembrará quais são, e de igual forma temerá não lembrar o que dizer se demorar mais um minuto. Coração saltando, terão voltado as palavras. De assalto, de tocaia, desleais, inescrupulosas. Soberanas. Belas, lindas, tão amadas. Suas, saberá, desde sempre. Ela duvida, às vezes, duvida com a mente. Mas Alma não conhece dúvida. Conhece sins e nãos. Alma esse amontoado de si mesma que carrega dentro e que nem sempre vê. É, às vezes é tão dentro e tão forte que não pode ser vista. Às vezes é sabido o quanto é Alma de doer e fazer doer, e fica escondida.
Há de procurar ávida o melhor lugar. Verá uma mesinha do shopping, e agora, sobre ela, o caderno novo de capa desconhecida. E é assim que se saberá, também. De capa desconhecida, o não sabido por fora e o mundo na garganta, apertando. Ah, como serão lindas e enormes as suas dores. Como serão visíveis. O de dentro de doer e fazer doer, há de saber, não fugir, não se trancar agora.
(continua)


domingo, julho 29, 2001

Está bem, eu fico só. Escuro e silêncio, está bem. Sem olhares que me não vejam, sem toque. Sem choque. Fico só, presa fácil do deus-monstro-solidão, tolo e voraz. Monstro grande de boca ávida de oferendas da Alma e da calma que perco e já quase não tenho. Está bem. Fico só em mim, só Alma, só mente. Somente peço, imploro e morro pelo dizer. Dizer de mim, de sonhos, e tantos, e tão grandes que não os posso ver inteiros. Então nego, mas vivem. Sonhos iguais, comuns, mas tão meus. Dizem que os sei contar, não sei se sei. Sei? Olha pra mim, assim em chamas. Olha isso de mim que assusta. Diz que posso, e vou. Fico só. Encolho e espero enquanto preciso e preciso que seja breve. Depois é depois.
Depois de tudo será a calma. Silêncio de céu limpo e escuro. Só no escuro ficam visíveis as verdades de dentro. Só-no-escuro-as-verdades-ficam-visíveis-de-dentro. Só no escuro há verdades visíveis, de dentro, fic... ah, contrastes! Contra-escuro de ser e ser. Um limpo novo e imóvel de tempestade que passou, e a calma.Só depois as certezas. De mistérios, de não saberes. Serena ignorância, humanidade. Vencer o humano é vencer o querer.
Talvez se deva só o que não se quer. O de que fujo é então o que preciso? Está bem, eu fico. Está aqui. Está o que sempre esteve, e foi, e fui. Só.

segunda-feira, julho 09, 2001

- Mãe, você deixa eu sair com um garoto?

Havia chegado o dia. Como é implacável esse tal de tempo! Outro dia mesmo o que saía daquela boquinha era um berro muito vivo, sob os tapinhas do obstetra. Agora eram aquelas atrocidades!

- Cumequié?

- Sair com um garoto, mãe. Mas é sair só até a pracinha - o sorrisinho maroto denunciava que ela já sabia a resposta.

- Ô menina, você só tem oito anos! Que idade tem esse rapazinho? - aquilo parecia pra mim um filme que se poderia chamar "Histórias do Mundo Cão".

- Sete!

Sorri de alívio e de mim mesma. Fiquei pensando no muito de não-mundo-cão que há nas crianças, e dei uma olhadinha furtiva e envergonhada para a criança que eu tenho/sou por dentro. Essa que eu chamo de Alma, e que é também assim desmascarada, simplificante das complicações da vida, mesmo quando parece o contrário. Mas é criança de pouca rebeldia, felizmente para essa eu-de-fora, casca adulta e limitada. Limitante então, bisturi de cortar asas, se necessário.

- Pode não! - Simplifiquei despótica, suplicando intimamente que essa fosse a última palavra. Nem foi, mas a pouco acalorada discussão que se seguiu, dada a pouca importância do seu objeto, acabou bem.

- Tá legal, eu já tinha dito isso pra ele - declarou quase rindo e foi para o banho, sem perceber o meu suspiro.

Dia desses eu conversava com um queridíssimo amigo sobre "desligar o superego". Penso agora no susto que essa possibilidade me causa, e no trabalho que sempre teve o tal superego para manter sob controle essa criança-alma, tão dócil quanto voluntariosa, que odeia renunciar. O renunciar a coisas ou a pessoas é ardido e árduo, mas ironicamente o é tanto menos quanto mais vezes acontece.
Fiquei ouvindo a vozinha daquela mulher-miniatura que agora cantava um funk sob a água do chuveiro. Ela afinal me parecia mais madura do que esta mulher-miniatura aqui dentro, que esperneia e grita, eu-criança-alma, diante de cada renúncia dessas tantas vida afora. Mas também cresce esta, eu sei. Como é implacável esse tal de tempo!


quinta-feira, julho 05, 2001

O casulo permanecia lá, impassível, diante do meu olhar indiscreto e impotente. Parecia tudo, menos vida. Ávida de símbolos, esta humanidade. Metáforas que lhe traduzam o não saber de si mesma. Pois bem, o casulo era cinzento igual a uma tempestade, e um pouco disforme. Eu não gostava do que via, mas secretamente conversava com ele, e não percebia que era porque é muito mais fácil conversar com quem não responde. Eu lhe fazia perguntas cujas respostas vinham de mim, e ele não assentia, nem contestava. Permanecia casulo cinza, imovel, e eu permanecia eu. Tanto o meu crescer quanto o meu diminuir eram eu. Anjo e abutre, comodamente inconsciente tanto de grandezas como de hipocrisias. Sim, porque nada somos mais do que humanidade.
Nada somos e nada podemos mais do que o humano. E lutamos pelo mais-que-humano. Seja o casulo, seja a tempestade, seja vida ou morte, seja a saudade meio absurda de alguém que foi embora de verdade, mas de quem não se conhecia mais do que as palavras; seja a culpa pela saudade absurda e pelo falar dela, o sentir-se tão pequeno... é tudo humanidade, e queríamos mais. E lá estava o casulo-morte-tempestade só pra me lembrar dessa pequenez não mais que humana. Desejei que se abrisse bem ali, diante dos meus olhos, e voasse tudo o que não consigo. Desejei uma certeza mais-que-humana de que as pessoas quando deixam esta vida voam tudo o que a gente não consegue. Mas a única certeza que tive foi a de que se vive nas marcas que se deixa. E no que é mais eficaz esse humano pequeno que somos, do que no marcar o humano? Quem vai embora arde em quem fica por causa das marcas. Mesmo de longe, mesmo sem rosto. Esperei, esperei... talvez visse o casulo vazio, dias depois. Não procurei, porque não veria o vôo. Só as marcas dele, e marcas já tenho muitas.

quarta-feira, julho 04, 2001

Olhava manso e direto. Um sem-cortinas que já a tantos intimidara que nem era surpresa quando alguém lhe evitava o olhar. Castanhos os olhos, e em sua modéstia ou falsa modéstia dizia-os ‘cor de asa de barata’, rindo. Profundo e vivo em olhares e palavras. Muito mais de olhar do que de ser olhado, mais de ouvir do que falar. E um enfrentar a si mesmo constante e dolorido que por vezes o curvava quase imperceptivelmente, espasmos-verdades.
Falava bonito, mas um falar bonito que nada tinha a ver com o palavreado rebuscado que nem gostava. Falava um falar que de bonito tinha o vir de uma região de si mesmo que prescindia e desconhecia palavras. E prescindindo e desconhecendo, apesar disso, ou talvez por isso, adquiria o poder de faze-las vivas e novas. Falava baixo mas nem sempre lento. Calava muito, um calar aflito e aflitivo de vida intensa, ardente, que de tão ardente logo cedia.
Sorria muitas vezes, mas tão discreto que pouco se percebia. É que sorria mais com os olhos do que com a boca. Talvez por isso aquelas luzes, que pareciam escapar dos olhos mesmo quando tentava, sabe-se lá por quê, mostrar um escuro que nem parecia seu. E eram tantas as vezes, como se temesse pela sorte dos outros diante do que era e pouco conhecia. Ser menos forte pelo bem dos fracos. Certamente sob dor forte.
Tinha mãos longas, firmes. Ágeis e precisas, e estranhamente apropriadas tanto aos esforços, não poucos em vida assim atribulada, quanto às delicadezas, estas de desejo e escolha. Podia transformar pedras em flores, gabava-se fingindo mentir, sem nunca deixar claro a que exatamente se referia.
Inaudíveis os passos, sensível e suave o toque, quase cerimoniosos os movimentos todos. Movia-se calmo mesmo quando aflito. Só nos olhos-faísca se lhe podia ver a fúria de alma, e eram poucos os que a viam. E tão próprio em reações e pensamentos que talvez fosse indiferente a uma tempestade ou talvez absolutamente arrebatado por um raio de sol. E se pouco se dava a conhecer de nome ou imagem, as muitas luzes de dentro o tornavam tão familiar que era como se estivesse estado sempre ali. E como se agora, conhecidas as luzes, fosse necessário mantê-lo ali sempre. E pra sempre.

segunda-feira, junho 25, 2001

Olhou de novo para seus livros novos, brilhavam. Montes de vida que ninguém via. Ou via? Ouvia dizer do bom que era um livro e do conter palavras. Mas sabia que era mentira, porque o conter palavras era triste e morto. Contivera palavras muitas vezes, triste e morto, e doíam como espinhos. Tirar espinhos também doía, embora menos, mas não sabia então ali ficaram. Quentes rubros de dor aguda radiante. Silêncios túrgidos.
Era assim que os via, os livros virgens. Eram casas. Mas vivas, e isso de casas vivas é confuso e difícil como tudo o que é vivo. Viu-se casa viva e difícil. Livro virgem. Precisava que se lhes extraíssem as palavras para que se pudesse fazer habitar, mas eram espinhos queridos, e os abraçava. Verteu assim de repente um medo escuro e denso, e grande, de que também os livros virgens novos abraçassem as palavras como espinhos queridos, e não as libertassem, e não as entregassem e não fossem habitáveis, e então seria tão grande o desabrigo que nem o medo grande alcançava. Mas lá estavam, e os olhava.
Tocou-os de leve, cada um. Não eram seus porque não eram nada, assim fechados. Chorou sem lágrimas o não-saber de tantos, talvez todos, que solidão pequena não é solidão, daquela verdade mínima. O não-saber do nada que são as palavras contidas. Nos livros e nas almas. O nada que assola a Alma é só um monte de palavras-espinhos contidas, medo de ser. Invisíveis e inaudíveis medos de ser.
Era seu o trabalho agora. Eram seus todos os nadas ali em suas mãos, e deles precisava extrair abrigo e dor. E de si, quem o extrairia? Sim, que era em si o confuso difícil do que é vivo, e há que se embeber em coragem mão e olho para entrar nele. Coragem, onde mesmo? Talvez não em outro, talvez não em si. Descobriria um dia, decerto. Agora era descanso e espera sob o aberto dos livros novos, à sombra de suas palavras já vivas, porque já não tão contidas.

segunda-feira, junho 18, 2001

Peguei um vírus. :o(
E não foi um vírus de computador, não. Não teve McAfee, Norton, não teve site-em-inglês-onde-a-gente-só-entende-a-palavra-download que me valesse. Não teve verificação, varredura, lavadura ou enxaguadura que o detectasse na chegada, e chegou. Era vírus-vírus, mesmo, no sentido pré-histórico da palavra. Aquele que a gente entende com o corpo inteiro.
Veio e aboletou-se no recôndito enxovalhado da minha garganta, silencioso – o vírus. Aproveitou o escurinho e a maciez do meu epitélio cilíndrico ciliado e ali prosperou. Cresceu, multiplicou. As valentes cordas – pregas que não se assumem – vocais, mais usadas do que sapato de carteiro, mas sem direito de reposição, já haviam dado muitas vezes sinal de exaustão, mas jamais de desistência. Pois bem, fiquei muda.
Quando o sujeito fica mudo ele tem mais tempo pra pensar. Se for professor, ou algo assim verborrágico, tem ainda mais, porque fica sem serventia e vai pra casa. Perde-se um tempão falando, há caminhões de abobrinhas verdinhas e bem-nutridas jorrando em direção aos ouvidos avisados e desavisados. Há abobrinhas pensadas, também, mas essas não são tão nutridas, porque é o tráfego que as alimenta. Permaneci restrita a essas, então, ao menos até ouvir o “thrrrrrrrrrrrrrrrrrrróinhóinhóinh” do modem, e adentrar este mundo onde se pode conversar sem voz. Paliativo, que a gente gosta muito mais é de abobrinhar à moda antiga.
Meu hóspede parecia muito à vontade. Roubou a voz, devolveu metade dela, trouxe a tosse, prendeu o ar, usou o diafragma como cama elástica, a epiglote como cavalinho, os sinos da face como piscina... Aflição do corpo pra quem só andava acostumada às da Alma.
Resmunguei, reclamei. Intuí monstros debaixo da cama. Resgatei pesadelos da infância. Chorei, chorei. Magoei um amigo querido (toctoc... :oP). Errei na automedicação e melhorei. Corrigi o erro indo ao médico e piorei. Pedi à filha que fosse minha mãe. Usei a palavra ‘mãe’ 9584850595459 vezes em três páginas de texto. Fiquei dopada de remédio. Fiquei acordada de raiva. Fiquei pequena, pequena, quase microscópica. Aproveitei o tamanho pra ir bater um papo com o meu hóspede, mas ele não me recebeu. Resmunguei, reclamei.
Imaginei-me uma caixa de geladeira. Assim enorme, grandona, larga, imponente. Auto-suficiente. Com medo de ser derrubada por um golpe de ar. Uma caixa de geladeira duplex com o desenho bem grande de uma taça quebrada, sublinhada por letras grossas e pretas: CUIDADO,FRÁGIL.

quarta-feira, junho 13, 2001

Havia sido sempre o respirar palavras, e tinham cheiro, agora. Ar-palavra pesado e fértil. Pólen quase livre, leve errante, cadente em cheiro doce de sândalo ferido, dores de Axis. Talvez por isso os sorrisos tristes, sorrir de dores belas e raras, dores pérolas que não sabia bem se amadas ou odiadas. Sabia-as Alma, desejando-as como sóis.
Ia guardando uma a uma, delicadamente. Guardava-as às vezes tão fundo que doíam quase como no longe em que haviam nascido. Dor e cura, insolitamente cúmplices. Ungia-se desses cheiros-palavras de dor sobre dor. Um ir-sem-fim-de-ser-sem-fim. Depois as prendia túrgidas até a calma, que vinha longe, longe... longas horas de viver Axis.
Um tudo intenso, gritante, que não era dor de sofrer. Quis ensinar seu saber pequeno da dor quase alegre, e mostrava-se clara, anelante dos auto-olhos de ver. Existiam, sabia. Mostrava-se esperando um ver que era ver-se, Alma-espelho. Névoa de Axis, veria? Mostrava-se esperando-lhe quieta as luzes-palavras dos olhos. Dores ainda, não sem sofrer.

terça-feira, junho 12, 2001

Luz forte de água iluminada, chuva de ver e ouvir. Estranha e bonita. Axis Alma perto grande, iluminando-se. Vozes fortes leves, mais canto do que grito, sorriso e vôo, dormir medo e acordar salto. Alma vasta rarefeita espalhada por mundos muitos, tantos que só o olho contava.
(Sabia sempre o olhar de Axis, e era sempre sempre. Silêncio escuro oculto imóvel Axis vigilante. Ainda assim pedia luzes, Alma-sede urgência, criança de temer nãos.)
Agora era imagem, e quase olhava. Quase porque temia olhar forte, este de deixar marcas de urgência. Mas agora era imagem, sabia. Axis imagem e verdade trazendo mil cuidados doces claros imobilizantes de tão finos. Alma sorrindo quieta, depois lenta. Axis caminho de aprender a andar.

segunda-feira, junho 11, 2001

Ouvir era ouvir-se... ouvir-se... ouviste, Axis? Silêncio... Alma muito acordada, olhando em volta. Silêncio de não falar, guardar medos antes expostos, asas antes abertas. Noite e chão de muitos caminhos longos hesitantes. Não lhe pertencia o voltar, e o seguir era múltiplo monótono nevoento, de tantas vidas. Buscava um grito, ecos de Axis, vozes novas de vôo e não de chão. Noite de quietude clara calma cálida e tudo de sonho, abismo de si e de susto. Névoa e Axis todo olhar. E ver, e ver era ver-se... ver-se... verter-se pó e sonho, palavras, olhos portas comportas de transbordar. Axis sede e não, incognitude de olhar abismo, imóvel, oculto em luzes como quem venda os olhos.
Seguiu-o Alma, sabia-se espelho. Vivo e limpo de ser e dizer. Pensou-se espelho de olhar e mostrar Axis-voz de silêncios muito velhos. Pensou-se chamado e apelo, toque e grito, voz de acordar como Axis. Era Alma somente, murmuro débil, chuva de ver, de ser, não de ouvir. Pensou-se lua. Era pedra.
Quase dia, ainda escuro. Ainda silêncio em silêncio Axis. Via-o música e riso, ainda, mas era Axis-silêncio. Silêncio e cansaço, cobrir abismos e mundos e o tempo e sangue e fleuma muito estanques discerníveis inalcançáveis, e cansaço.
Gritou Alma um grito de querer doce triste calmo. Movia muito um dizer perplexo, descrença no imóvel, silêncio de sem voz. Gritou cansaços e já era tão Alma que de pequena só se lhe sabia o grito. Até calar grito e sonho.
Amanheceu, sono frio e trêmulo. Sacudir de pó e sonho. Caminhar sob olhos ocultos e fé calada. Espera nômade chuva de ouvir.

quinta-feira, junho 07, 2001

Via Alma o farto de palavras que era Axis, chuva de ouvir. Sabia-se espelho liso vazio de moldes e molduras, e eram-lhe as palavras como luzes e sombras. Alma imagem viva, vívida, e sombras e sonhos e sons. Axis-lugar. Palavras trazendo silêncio...

............................................................................................................................

O teu silêncio fala. Mais do que as palavras, talvez. É a mágica, o inexplicável que tanto se explica sem que a pergunta sossegue. O que é que faz nascer a afinidade? Como se fosse possível saber os porquês de entender silêncios, pobres de nós que nem realizamos o entender olhares.

Talvez seja o gesto recíproco de olhar para ver, mais do que para ser visto. Uma surpresa ágil de curto-circuito, luzes soltas profusas . Um disparo ruído de microfone que capta seu próprio som amplificado. Fluir. Captar-se amplificado. Mover oposto de fugir.

Talvez seja mais que o gesto, seja a freqüência igualdade de força e estatura.. Palavras indispensáveis sabendo-se insuficientes, humildes, cedendo lugar ao silêncio... shhh...

terça-feira, junho 05, 2001

Novamente a voz de Axis. Embora distante, ouvir mais intuído que real, real porque intuído, era clara. Voz firme de larguezas antigas, ecos de fé, força contida com esforço ignorada. Palavras dum fluir doce brusco de temporal, chuva de ouvir, fechar de olho insólito arriscado, abandono, medo como um fio. Falava falava um muito que era pouco porque um só. Sim, palavra única Axis. Sabia Alma de saberes muito esgarçados que era assim, e tinha de ser. Ouvir era ouvir-se.
Riu de novo. Era de riso raro restrito às horas de dor nenhuma, e via estranho em Axis o rir da dor. Mas ria, agora. Riso de Alma era fundo, belo de luzes e de poucos porquês. Agora Axis. Tinha de dizer-lhe do difícil que era estarem muito perto, forças de interagir equipotente, denso extenso crescente até um quebrar de angústia feliz, que é saber-se e também é dor. Mereciam-se.
Desde sempre desprezara os medos escondidos. Gostava dos ousadamente expostos, cuidados grandes de monstros de sombras de cantos de ventos. Gostava dos ventos, medos de Axis. Ágeis medos claros, transparentes respirantes, crescia neles. Um imperfeito vago de rejeitar mazelas perfeições, maior que o tempo.
Tempo rarefeito, tênue de fumaça muito branca, nuvem de esperas. Havia esforço e o tempo gemia, derretendo. Viu abertas muitas portas comportas, janelas rudes de guardar escuros. Um claro de ir e vir, e tudo novo. Palavras agora muitas, não sem dor. Vozes loucas de dentro, de grito e de canto. Música de ser.

segunda-feira, junho 04, 2001

Vai, pode ir. Pega o teu fardo leve e vai. É hora, e é tarde. Anda! Não me pergunte onde, que não sei, que nada sei nem de mim, mas sei do que podes, de um pouco do que podes. Do que não posso, sei tudo. Vai em silêncio, mas só dentro, aqui onde foste verdade. Leva a tua verdade-mentira, e procura pouso em lugar que te aqueça, que não gostas de frio.
Não te chorarei. Não há motivo. Vais porque tens que ir, que não és meu, mas de quem te acolha. És de quem quer que tenha a sorte, corra o risco, pague o preço. És de qualquer um e de ninguém! Vai! Leva minha dor e meu prazer, minha ânsia de vida e minha morte diária. Voa lento, que vejas o mundo. Tens tão pouco, e é tanto. Vê o de tão humano que há em tudo, que és tu mesmo fruto do humano.
Olhamo-nos com desnecessária profundeza, que éramos um. Mas por que tanto a dizer, não sei. Era o dito ali partindo sem pena, partindo fúrias e silêncio, partindo-me. Quis ir junto, tolices de Alma nunca antes tão pequena. Calei, em brados.
Se assombração não sei, tremi. Delírio loucura fantasia e ali palavras, letras vivas de vida minha, de pé à minha frente, desafio. Olhar altivo de muitos saberes ocultos, todos ali, num só, e me olhava. Não perguntei o que queria porque quem queria era eu, e tanto, tão longe, tão velho. Verso-gente de muita beleza e pouca razão, de respostas de Alma, que agora era sombra de medo e dor. Medo de dor. Me era leve aquele estar sem palavras, que delas o peso ia todo em verso, fora, mas eu sabia que por pouco. Tanto a dizer e nada digo.
Silêncio ainda, memória viva de quase sangue. Um quente espesso de muita letra antiga. Dor antiga gozo dúvida angústia tudo de antes e de agora, palavras de onde nem sei, tantas já havia abrigado. Vida que ferve longe e vem em vapor de palavras luzes sons incertos indigentes, voando procurando abrigo. E ficaram, vívidas dormentes indeléveis. Sempre pra sempre.
Vai depressa! Importa o que farão de ti? Importa o que farás, se vida ou morte ou névoa ou luz? Importa mais que a vida, mas é grande e não sei grandezas. Sei palavras lágrimas muito débeis, tua força toda sangue e seiva. Sei tua força minha, mas vais agora porque é tempo e nada mais sei. Pousa leve no teu destino, e dá do que tens ao que encontrares. Abriga-te agasalha-te mas não te protejas, que só te há de dar guarida quem sabe queimar em troca de luz de sol, de brasa sobre pele, sobre Alma...

domingo, junho 03, 2001

Parecia uma idiota. Pensou por um momento em qual seria o demérito de parecer uma idiota. Era já desde o segundo grau fato sabido que os idiotas são portadores de uma anomalia genética que lhes dilapida a inteligência antes mesmo que ela exista. Era claro então, se é que alguma coisa era clara, já nem sabia, que não há mérito algum na inteligência nem demérito na falta dela. Achou bonito parecer idiota e mesmo que não achasse não sairia dali. Não podia.
Os peixes iam e vinham. Flutuavam diante dos seus olhos como idéias, palavras dessas que fogem quando a gente se mexe, como respostas assustadiças. Não os tocava, mas quase podia sentir-lhes a textura escorregadia da pele. Peixes não haviam sido feitos mesmo para serem seguros por mãos humanas. Olhou para as próprias mãos espalmadas de cada lado da cabeça, unhas bem-feitas de brilho cuidadosamente simulado, como todo brilho que ousava demonstrar. Queria mais, um quê que não sabia. Só os peixes pequenos estavam por perto. Bom. Havia sempre temido as coisas grandes, as idéias grandes, o ser grande. Os seres pequenos lhe eram confortáveis, familiares. Queria que todos fossem seus, e riu do grande que era essa idéia confortável.
Era como estar lá dentro. Desejou um sonho – sim, já muitas vezes havia ousado desejar ou planejar sonhos, que já algumas vezes acabaram acontecendo sonhos de verdade do jeitinho que havia desejado, e era divertida a idéia de sonhar ao contrário, sonhalizar realidades. Mas agora desejava um sonho onde pudesse dar um passo à frente, só um, e entrar no gelatinoso fresco daquele mundo de vidro e água que agora só podia olhar. Tragada pelo mar forjado de peixes e respostas, faria parte dele e talvez fosse ela mesma uma resposta também. E era bom que sonho não tivesse tempo passando. Não gostava do tempo que sempre lhe roubava os agoras de que tanto gostava. Sem tempo era fácil estar ali entre um tudo de si mesma tão desconhecido quanto fascinante, tanto de tudo de si que era capaz de se amar, até.
Quase tocava o vidro com o nariz, agora, olhando nos olhos dum peixe grande, listrado. Ele não a enfrentaria, lamentou. Ninguém o faria, se soubesse. Mas não sabia ela, também. Nunca teria medo, se soubesse. Esperava que o dissesse, o peixe listrado de olhos redondos que de grandes e sem pálpebras pareciam susto, mas eram calma. “Senhora, não pode ultrapassar as cordas”. Redondos os olhos traindo a voz firme. “Senhora”. Não, era outra, que não se sabia senhora de coisa alguma. Talvez de algo que ainda precisava conhecer. Algo que talvez tivesse encontrado se o segurança do shopping não lhe tocasse gentilmente o braço...

domingo, maio 27, 2001

Desenhar o cheiro daquela flor amarela lá fora. Sair na chuva de boca e braços abertos. Rir de dois problemas, talvez três. Fechar os olhos ao sol forte, pálpebras relaxadas em cortina vermelha. Investigar o paradeiro da formiga com a folhinha, de qualquer coisa muito leve levada pelo vento ou da ponta do arco-íris. Deixar o vento embaraçar os cabelos. Ouvir o barulho do mar na concha, e acreditar. Brincar de 'bem-me-quer, mal-me-quer', e acreditar só no bem-me-quer. Levar pra casa a areia do mar na pele e as flores nos olhos. Embriagar-se de água de coco e riso. Beijar como quem bebe, abraçar como quem dorme. Entregar-se. Render-se a si mesmo. Assistir reverentemente ao balé das nuvens. Caçar grilos entre as folhas de grama. Chorar sem pena, gargalhar sem censura. Ver com as mãos e os olhos. Entender com a alma. Querer sem porquê.

segunda-feira, maio 21, 2001

Não era dor. Era muito choro, quase todo escondido, sempre que dava pra esconder. Choro tão fundo que não se sabia o fundo, escondido no escuro que sempre havia sido dentro, agora mais. Era um sentir pastoso de esforço e lentidão, um estar preso – e estar preso fora sempre tão aterrorizante, como naqueles sonhos da infância, de medos e gritos que não saíam, e braços e pernas que não moviam. Um tal sub-estar que o mundo todo era longe, lá em cima, e que não chamassem porque feria.
Querer era algo antigo. Não havia, agora. Havia o que é, e é. Então, que fosse, e consentia. Com – sentia – extrema consciência do querer que não havia. Lembrava-se ainda de quereres tantos e tão vivos que queimavam e luziam e se levantavam em ondas de quebrar e espalhar e derrubar e ser, ser, ser, ser em grito ou espasmo, mas ser. Quereres velhos, perguntava-se se mortos. E morrem?
Talvez fosse dor, sob todo aquele tudo sem nome cujo nome quase se lembrava, ou inventava. Talvez fosse até grito e espasmo, mas só lá, sob tudo, fundo. E era escuro e parecia tanto com o de onde o choro vinha, então conheceu mais um braço da verdade. Sim, tinha braços, e de fato era só o que se podia ver da verdade, os muitos braços. Sua verdade de braços não tão belos quanto fortes, indestrutíveis, mas retráteis. Lá estava.
E não o queria ver, não realmente. Era feio, e não sabia por quê, já que tão perfeitas eram suas formas. Ainda assim, desviou o olhar, mas foi porque tinha o péssimo costume de partir com o olhar e tocar nas coisas, ferindo-as, ferindo-se. Ah... ar... amaldiçoou a coisa repetida e monótona de voltar sempre ao mesmo poço de ar pastoso , aquele de esforço, lentidão, e vestígio de dor funda e escondida. Encolheu-se de novo, procurando conforto na superfície de si . Fechou os olhos para deter o olhar até da Alma. Adormeceu um sorrir triste, de novo.

terça-feira, maio 15, 2001

Tudo é difícil. Árido, ao menos. Tudo de bom tem um travo ruim, como daqueles cortezinhos na língua quando a gente come abacaxi, ou o ardido na pele depois de um fim-de-semana na praia. Nada neste mundo é totalmente bom. Tá, nada é totalmente ruim também, mas disso eu falo outro dia.
Lembro de uma 'alegria difícil' que eu li da Clarice Lispector, aquela das palavras todas encharcadas de verdade, que levantam fascínio ou incômodo, dependendo do gosto do freguês. Ela - a alegria difícil - deve ser fruto de um encontro muito profundo consigo mesmo, e nem isso se sabe ao certo. Mas é assim, dual, essa tal de humanidade... tanto que não consegue ser sem ser também o oposto, pensa bem...
A óbvio-dual-humanidade faz doce com um pouquinho de sal, crê com um pouquinho de dúvida, despreza com um pouquinho de admiração e ama com um pouquinho de ressentimento. Coisa complicada esse tal de eu...
E devo estar repetindo alguém. Mas - oh, que falta me faz o monte de coisas que não li - ainda que não original, ou nem mesmo verdadeiro, garanto que é sincero! ;o)
Deve ser por isso - a dualidade - que a fé é tão difícil. Deve ser mais por isso ainda que a mais difícil de todas é a fé em si mesmo.

segunda-feira, maio 07, 2001

Era preciso acostumar. Não, era melhor aceitar. Aceitar resignadamente que havia música, e riso, e vida, apesar do escuro que era dentro. Mas a essa altura já se ocupava de outra coisa, uma idéia que lhe fugia dos olhos como um inseto, zumbindo. Já não lhe era claro se valia ou não a pena recupera-la, já que era algo como um saber, e tanto lhe doíam os saberes. Mas havia música, toda acesa e inadequada, e riso incômodo, que não se importavam com o seu desprezo, e fluíam, tépidos, acariciando ousados os ouvidos e a alma.
Fechar a janela? Era mesmo provável que ao fechar a janela não lhe chegasse mais o som aos ouvidos. Mas não seria suficiente, já que o som ainda estaria ali, no silêncio, música e riso, e escuro dentro. Como se música e riso lhe celebrassem a escuridão, sem no entanto ameniza-la. Desejou por um momento ser menos, saber menos. Era provável que todo acostumar-se, todo aceitar, fluíssem melhor sobre um saber menor. E as idéias fugindo – ou chegando? – num esvoaçar farfalhante como nunca antes havia ouvido. Ventavam-lhe no rosto lembranças velhas, planos, perguntas, palavras desconexas, mas cheias de um sentido que não podia reter entre as mãos. Voava-lhe o sentido. Já não o sentia.
Até o limite, resistia. E escondia cuidadosamente a sensação de que era capaz de resistir além dele. Afinal, que são limites? Lembrava-se claramente de tê-los estabelecido, portanto, móvel que era, bastava faze-los também móveis, e seria tudo serenidade e correção. Resistia à música e ao riso como a uma propina, e ilicitamente a invadiam, e já eram marca de nascença. Tinha ao menos um silêncio íntimo, forjado, presunçosamente inerte. Ao menos ele era seu, e o escuro. Mergulhou então no silêncio como quem explode e era tão mínimo e tão seu que todo o resto quase não existia. Celebrou assim uma solidão única e blindada, cheia de dorezinhas miúdas e miúdas vitórias. Via-se, finalmente. Era, no silêncio e escuro. Ainda que não houvesse a quem culpar.
Esperou, mesmo sem saber ao certo pelo quê.
Sabia não haver nada mais fiel que o tempo, e passou. Música e riso eram perto, passando num fluir espesso de folia de rua, escorrendo para longe, morrendo aos poucos até cessar. Era difícil saber se o cessar lento era da música ou do ouvido. Silêncio dentro e fora, finalmente. Já era hora de chorar.

quinta-feira, maio 03, 2001

Comprei um caderno vermelho. Na verdade ele de vermelho só tem a capa. Suas folhas são brancas com linhas pretas (azuis?) muito finas e eqüidistantes. Mas gosto de chamá-lo de vermelho.
Vermelho pra mim foi sempre cor de ousadia. Até nas roupas. Primeiro a indecisão, o abrir mão da discreção, cuidadosamente construído, depois o mergulho, e o não querer outra vida. Sou assim com ousadias, o medo vira vontade num piscar de olhos.
O caderno vermelho era para o óbvio: Escrever. Escrever o que quer que fosse. O mais óbvio dos escreveres. Eu precisava. Havia passado semanas fugindo de minhas próprias letras, eu que tanto dependo delas, e tanto sei disso. Vi-as ainda aqui, esperando, em algum lugar, aqui. Vi que de alguma forma era possível resgatá-las. Ousar. Não me ocorreu de início a necessidade do ousar para que eu me entregasse a elas de novo. Agora vejo o tamanho da coragem que me era exigida.
Para algumas pessoas, o escrever é de um tal abandonar-se que quase se parece com enlouquecer. Antes isso não era importante, o enlouquecer. A loucura era bela e sedutora, e eram tão mais altos os meus vôos quanto mais eu me abandonasse à sedução da loucura. Ainda é assim, ainda sei que é da loucura que partem os vôos, mas temo a ambos. Terão sido os tombos?
Ainda bem que não aprendi a fugir do que temo...
Tenha sido o que tiver sido, passei muitos dias sem as letras. Lendo, alimentando-me das letras alheias, mas sem dar voz às minhas próprias. Não quero mais assim, não quero estar protegida. Quero palavras e riscos. Letras, vôos e tombos. Minhas palavras são o melhor eu que há, não quero estar longe delas. Quero ousá-las, ousar-me em todos os meus arriscados e magníficos tons de vermelho.

sábado, abril 28, 2001

Perdi de vista as palavras, e as temi. Já sabia que sou e tenho apenas palavras e me entrego se as entrego. Então olhei para dentro do eu-palavras que sempre fui, e tive medo de que, batendo em terra seca com tamanha força, o morrer que é se dar em palavras fosse tão raso ao solo em que se lançasse, que eu me tornasse nada, ainda mais do que antes.
Alma se escondeu, ou ao menos tentou...
Só que havia olho e ouvido de roubar palavras. Um roubar tão doce que levou Alma junto, eu-palavras em morte pequena e doce, de semente em solo fértil, úmido. Calor. Temi ainda. Neguei muito, quase tudo. Escaparam uns poucos sonhos velhos, alguns ais, eu-palavras secas e frágeis. Eu-palavras de vida latente oculta, medo e não.
Havia olho e ouvido, mãos, pele, "eu quero", "eu não sei", "eu preciso". Brotou à força Alma. A força-Alma que nem se sabia viva. Viver não é afinal o mesmo que sentir frio.

segunda-feira, abril 02, 2001

Diz que viver não é crime. Mas a vida toda procuramos cúmplices.
Cúmplices são estranhos múltiplos multiformes difíceis de encontrar. Encontrados, capturam-se facilmente. Porque capturam quando/enquanto são capturados. Podem estar em qualquer lugar, ingógnitos ignorados, anônimos. Estranhamente o reconhecível do cúmplice não se vê, ouve ou percebe nele. Valem em quem o encontra os sintomes de cumplicidade, grandes e claros.
Vale olhar fácil nos olhos em mão dupla.
Vale atrair-se tolo e infantil por banalidades, algumas esquecidas. Vontades estranhas de banho de chuva, estórias da infância, fruta madura, cheiro de mato, bobagens afins.
Vale esquecer de súbito toda máscara. Um ser-eu-mesmo violento e inexplicável que assusta/alivia. Momento de verdade quase feia, morna e confortável.
Vale perder exatidões, especialmente de tempo e espaço. O tempo pára e voa no mesmo instante, a distância é milímetros, braços, abismos e milhas, no mesmo lugar. Exatidões renitentes imperdidas perdem a importância e são nada agora, já que tudo é agora.
Vale o maior sintoma, e acompanha os outros todos. Um receio incômodo pontiagudo de se estar adormecido em vez de em vigília, e em vez de vida ser sonho, tudo, algum tipo de brincadeira, filme, febre ou jogo, onde vale tudo, menos acordar.

terça-feira, março 27, 2001

Era inevitável. A imagem vinha-lhe à mente tão logo ouvisse ou pensasse na palavra. Seria assim com todo o mundo? Ouvira dizer que não. Mas eram poucas as palavras que não lhe produziam imagens na mente. SEGUNDA-FEIRA era uma sala cinzenta, meio enfumaçada, na qual se entrava depois de passar por duas outras muito claras e arejadas, o SÁBADO e o DOMINGO. ESQUERDA era o pedaço maior do muro da escola primária onde estudara, que era cortado, um terço à direita, por um enorme portão de ferro.
Assim virava tudo imagem, e por isso mesmo - sorte das sortes - virava tudo metáfora. Escrever/descrever coisas ficava fácil então, mas nada mudara no tocante a compreendê-las. Entretanto, levando-se em conta o mundo de coisas assumidamente incompreensíveis entre as quais vivia desde há tanto tempo, quem o desejaria, afinal?

Era aquela imagem especialmente curiosa. Um polvo enorme, cinza-azulado, de enormes tentáculos gelados cheios de ventosas, muito móvel, revolvendo a água e produzindo ondas de bolhas minúsculas. Nos dois olhos uma expressão muito séria, como aquelas que se assume quando se pretende provar algo a alguém. Impossível saber o que deseja o polvo, ou por que se move freneticamente, ou onde vão parar todas aquelas bolhas. Era aquela a imagem da palavra POLÊMICA.

Ao contrário do que pudesse parecer, não tinha aversão a polêmicas, nem costumava fugir delas. Mas, definitivamente, não pagava por uma. Ainda não havia visto um polvo (na verdade não vira muitos polvos na vida, e quase todos os que vira estavam mortos) que correspondesse em periculosidade à apreensão que a espécie às vezes despertava. Polêmicas, ao contrário, geravam mudanças às vezes. Algumas boas, algumas graves. Mas na sua maioria grande e barulhenta, elas costumavam produzir em quantidades consideráveis apenas adrenalina.

Mas, sabe que os polvos lhe pareciam mesmo uns bichinhos felizes?
Escrevia/descrevia polêmicas, em vez de entrar nelas. Perguntava-se se de fato não entrava, pois elas tanto lhe tomavam o pensamento, tanto divagava e enfrentava-se internamente, com tamanha intensidade, em função dela, que chegava a ser físico o seu cansaço. Era desse jeito que as amava.
No cansaço adormecia, adormecendo mergulhava em águas fundas e geladas, debatendo-se, muito móvel, revolvendo a água e produzindo ondas de bolhas minúsculas...

segunda-feira, março 26, 2001

Tive a impressão de que o estrondo das muitas antigas palavras caindo no chão fosse produzir alguma alteração no cenário, ou em minhas sensações, como o acordar de um sonho. Enganei-me. Não houve estrondo. O ruído de minhas palavras era débil como o som de um riacho, e me produzia uma urgência doída como de um parto, mas de lágrimas. Saltavam-me zelos e dores, e era contê-las esforço e cansaço.

(Nesse momento foi quase certeza a impressão outra que eu tinha, a de que minha aparência não era humana de verdade. Às lágrimas sorri, e meus indicadores se se juntaram diante dos olhos. Mesmo assim não os vi.)

Seguia o som débil de riacho-verbo de mim, e era tudo úmido. Os seres esverdeados eram agora ouvidos atentos, diligentes, e ao mesmo tempo silenciosos e chuvosos de palavras. Uns abriam muito uns olhos brilhantes, os de dentro, os de se mostrar - verdade que vinham os espelhos impertinentes contumazes, perturbadores da avidez de se fazer ver ao outro antes de a si mesmo, mas para espantá-los bastava que não se lhes dirigisse o olhar - e iluminar, e era neles uma beleza muda e inquieta e torta e real. Esse abrir olhos de se mostrar podia ser doloroso, eu sabia de dentro, então estes que o faziam eu os via grandes e fortes.

Cessou o riacho, recolhi palavras e observei. Era o tempo, no fundo, uma esteira brilhante que se movia sempre e sempre igual. Alguns subiam nela, outros não. Um não muito grande tentava ultrapassá-la deslizando, mas flutuava e voltava.
Sabia-se muito naquelas terras. Eram grandes os olhos e os ouvidos, sempre ávidos, e mãos vertiam palavras. Vez por outra acoplavam-se olhos ou ouvidos a crateras no chão, como investigando. Vez por outra agitavam-se dedos prenhes de letras logo depois, e eram palavras secas. As palavras úmidas de riacho-verbo - felizmente alguns também as tinham - eram aquelas que emprenhavam inteiros corpos-almas, as vidas, por muito. E às vezes vinham ornadas de sorrisos, ou de lágrimas sólidas muito redondas, ou daquele brilho de luz forte, olhos de se mostrar. Eu bebia como quem ouve, e lamentava que o melhor de tudo fosse de tão poucos .
Sorri de medo de não voltar mais à humanidade.

sábado, março 24, 2001

Eram verdes. Não, verdes não chegavam a ser. Eram esverdeados, feito algumas veias discretas que se insinuam sob pele morena. A mim me pareciam humanos, embora não tivessem em sua aparência nada de humano exceto os olhos. Sim, pareciam humanos usando fantasias estranhas, mas eram menores, alguns.
Da minha própria aparência naquele mundo eu não tinha idéia. Não que não houvessem espelhos. Havia muitos, e muito grandes. Espelhos animalizados que muitas vezes se nos perseguiam o deslizar – é, deslizávamos em vez de andar, como sobre uma total ausência de atrito, era sem dúvida um mundo de facilidades – colocando-se-nos à frente como que em atitude de desafio. Mas felizmente eram líquidos, e a maioria lhes atravessava o corpo sem olhar. Eu pensava que neste mundo os espelhos correspondiam aos cãezinhos.
Como quase todos ali, não olhava o espelho, nem a mim mesmo. Não ousava, gostava de imaginar que não me parecia com aqueles serezinhos esverdeados e barulhentos. Observava seus olhos duplos. Não eram pares de olhos, mas olhos dentro de olhos. O de fora, ressecado, enorme, muito aberto e rígido, era de ver, ávido em conjecturas, múltiplo de montar quebra-cabeças apenas olhando, eu achava. O de dentro era de um brilhante muito aquoso, transparente, mas tão pequeno que algum desatento seria capaz de ignora-lo. Eu o via apenas por causa da muita luz que emitia. Era a única coisa bela ali. O resto era no máximo engraçado.
Traziam coisas muitas nas mãos, que eu não conhecia. Não tinham soberano algum, ou normas estabelecidas, mas havia relativa paz. Sorriam, descobri depois, juntando dois dedos indicadores na frente dos olhos. É que não tinham boca. Falavam com os dedos, também. Inexplicavelmente eu os compreendia.
Pediram-me coisas. Que seriam? Sem olhar, larguei-lhes aos pés o que eu trazia nas mãos , que eu pensei que fosse nada. Eram palavras, uma enxurrada. Sorriram todos, e foi só então que me senti em casa.

segunda-feira, março 19, 2001

Era uma vez um pássaro que não voava. Não voava porque havia aprendido desde cedo que era incapaz de voar. Ele achava que as próprias asas eram tão inúteis... Achava que a própria vida era tão injusta... E simplesmente não voava.
Era uma vez um pássaro que não conhecia o céu. Ele via o céu, via os outros pássaros no céu, mas só via... e tudo de longe. E era tamanha a sua certeza de que jamais voaria, que não havia no mundo um pássaro sequer que pudesse ensiná-lo a voar.
Mas alma de pássaro voa longe... voa alto! Não tem medo, nem complexos; não tem dor, nem limites! Então o pássaro chorava, porque alma de pássaro, quando voa, não carrega o corpo, e volta logo, se esconde e se lamenta, e por isso ele sentia muita dor.
Até que um dia ele conheceu um anjo...
O anjo, por ser anjo, fez com que o pássaro olhasse as próprias asas e as amasse. Fez com que as abrisse e as movesse... e o pássaro acreditou que podia...
Só que anjo voa no céu dos anjos, e pássaro no céu dos pássaros. Apesar de confiar no anjo, o pássaro sabia que, se fosse até o céu dos anjos, não seria mais um pássaro verdadeiro. E não foi, e temeu. e sofreu o medo de nunca mais voar!
O anjo, por ser anjo, disse ao pássaro: "Não tenha medo: Sou eu que estou aqui com você!", e o levou ao céu dos pássaros, num vôo simples e pobre de sensações para um anjo, mas alucinante e inesquecível para aquele pássaro que não voava.
O vôo foi curto, rápido demais para o tamanho e a intensidade do que o pássaro sentia. Logo, logo, o anjo voltou ao céu dos anjos, mas o pássaro nunca mais foi o mesmo. Deste dia em diante, ele nunca mais deixou de voar, mas um vôo diferente, ousado, belo e peculiar. Ele então ficou conhecido entre todos os pássaros como "O pássaro com vôo de anjo".

terça-feira, março 13, 2001

Olhei Alma por um instante, será que também chorava?
Aflição de Alma era coisa sabida e certa e antiga. Era de sempre aquela inquietude, um grande apertado dentro, doído, explosão iminente e forte, que não vinha. Aquela intensidade de um algo que podia ser tudo ou nada, mas não era lágrima. Não lágrima visível. Havia muito que faltava a Alma, e eu sabia. Mas via pouco, ouvia pouco, e conhecia pouco. Éramos de rochas, eu e Alma. De vento grande , intenso e furioso, e chão duro. E o chão era raro, tanto que duvidávamos se existia.
E eu esperando, sempre. A cada viagem, cada visita, um muito de se ver, se repetir, como quem decora versos. Um muito grande de mim e de Alma, que era o mesmo. Mas Alma chorando era coisa nunca vista.
Era grito, espasmo, imobilidade fervente, barulho surdo, grade firme, revolta. Era Alma. A mesma. Serena de olhos retos luminosos, e verdades, e escuros tão expostos como o dia. Agora um quieto duro, aceso. Alma silêncio e fúria.
Mas o quase era maior que o sempre. O agora maior que o tudo. Silêncio e fúria em cores, peso de horas. De vidas. Dívidas de ir e de ser. Faltavam-nos sins.
Em silêncio e fúria era tudo não. E horas muitas e ar pouco, e palavras de se buscar com mãos e boca. E sedes, e dores. E limites sem lugar.. eram não-saberes antigos, esquecidos, emergindo do fundo de dentro, medonhos, velhos grandes imortais.
Misto de janela e espelho dentro, fundo e escuro, o lago. Alma pálida rede-emaranhada, cansaço, morte pequenina quase bela. Sorri buscando, grito invisível. Indizível. Não lhe via os olhos. Sabia-lhe olhos, gritos e lágrimas, sem ver. Silêncio e fúria.
- Desce! – Explodi em mil nãos, vagos inúteis. Era preciso, fui.
Frio escuro de novo. Silêncio macio de água parada, descendo, descendo, nem sol nem ar, descendo todos os nãos até o último. Alma no fundo, a mesma. Recente e viva. Presa quase triste. Corto-lhe redes com os olhos. Muitas sempre ainda agora.

segunda-feira, março 12, 2001

“A gente só tá pronto quando morre!”
A frase foi dita por um menino de seus quinze anos, em meio a uma aula que tinha tudo para ser teórica. Meninos de quinze anos são surpreendentes às vezes, e Alice sabia disso. Já não se surpreendia tanto.
Era uma aula de ciências. Ao longo de seus mais de dez anos em sala de aula, Alice havia aprendido que é possível estudar ciências em qualquer tema, e que por isso em uma aula de ciências ‘pode tudo’. Tudo é pertinente porque tudo é a vida, e é a vida mesmo o que se quer estudar. Falavam sobre reprodução.
O objetivo era comentar a fecundação, a evolução do bebê, a gravidez, o parto... Alice visualizava suas próprias gestações, enquanto exibia àqueles trinta pares de olhos arregalados os vidrinhos de formol contendo fetos. Ela não podia evitar o pensamento que zumbia em sua mente, o de que, caso aqueles fetos tivessem sobrevivido, seriam hoje mais velhos do que os seus próprios filhos.
Surgiu o questionamento a respeito de quando é que passa a existir um ser humano. Falaram em transformações, e no fato de que elas não cessam, desde o aconchego do útero até a maturidade, à velhice. Apesar do tempo e da experiência, nada pôde impedir que a própria Alice aprendesse muito, e de novo, com aqueles meninos de quinze anos. A gente só tá pronto quando morre.

terça-feira, março 06, 2001

Cada vez que se encontravam era um celebrar novo, de novo, do privilégio de se haverem conhecido. Como uma festa. Uma festa de palavras e gestos que ambos sabiam infinita, porque independia do que tinham e se baseava no que eram, cada um, para si mesmo e para o outro. Eram ilimitados nestes momentos, cheios de poderes mágicos.
Não. Não era paixão. Paixão é o sentimento que faz do outro um fim. Torna-o o objetivo final de todos os caminhos. Paixão desconsidera qualquer horizonte além do realizar-se a si mesma, e por isso é vazia. Paixão é fogo e explosão, mas ainda assim, paradoxalmente, fria, pq objetiva em vez d humanizar. É querer, puro e muito forte.
O que tinham era mais, era menos, era diferente. Era algo sem tamanho e sem nome, que elevava e arremessava cada um tanto em direção a si mesmo quanto ao outro e ao mundo, e que por isso mesmo os fazia grandes, sendo a grandeza o seu menor objetivo.
Palavras tinham muitas, mas as sabiam desnecessárias. Havia o olhar. Havia uma certeza de algo que não sabiam o que era, mas gostavam. Era um quê de conforto, um estar à vontade, um querer que o tempo não passasse para ficar ali, só entendendo que estavam juntos de uma forma muito mais do que física. E eram divagações, viagens, bobagens... Era não ter que dizer nada, era poder dizer tudo. Era leveza e densidade, deliciosamente alternadas, como um sorvete com calda quente.
O olhar era tudo. Era onde se entendiam crianças, e absolutamente livres. Gostavam de imaginar que tinham um vínculo tão seguro que mesmo que lhes fosse definitivamente impedido o encontro haveria em um algo do outro. Mas não era um pensamento romântico cinderélico, tipo ‘my heart will go on’, não. Era algo de antropofágico, de herança, de absorver o outro a cada troca, de ser um pouco o outro em idéias e pensamentos, simplesmente por achar nele espaço para sê-lo.
Eram amigos. Cúmplices. Amantes, eventualmente. Admiradores, sempre. Cultuadores quase silenciosos um do outro, em defeitos e qualidades. Sim , admiravam-se também os defeitos! Eram os defeitos, não seriam sem eles. Admiravam com alguma raiva, certas vezes. Mas respeitavam um ao outro, muito, extremamente. A noção dos limites do outro, que não tinham nítida, porque ninguém tem, era investigada e buscada a toque de dedos sensíveis e trêmulos. Cuidadosos, mais do que o necessário, mas verdadeiros, quase tanto quanto o necessário. Não havia hipocrisia. Eram, simplesmente. Por isso eram tão felizes nessas horas. Loucos e crianças. Completos.

segunda-feira, março 05, 2001

Hoje é seção tietagem, viu?
E não é que é legal esse negócio de link? ;o)

Mais legal ainda essa coisa de escrever...
E tem mais gente que acha, e gente legal!
Ando abestalhada com a quantidade e a qualidade do que se escreve internet afora. Amigos de chat, e-zines, blogs, gente linda e anônima (alguns nem tanto) dando o recado que nem 'gente grande'. Não vou falar hoje dos textos que recebo por e-mail porque ainda estou boquiaberta demais com eles, mas dia desses chego lá.

Como se não me bastasse a Zel-original , ou a Naomi (posso chamar de dindinha?;o), minhas tímidas futucações pela net andam rendendo um caldo. Já há algum tempo eu tietava descaradamente a 700 Km, por conta desse jeitão bem-humorado de escrever (leia-se escrever BEM) que eu gosto tanto e sei tão pouco. Daí é pra 'pior', né?

Esta semana fui parar, movida a baba, na seção de correspondência da Spam Zine, o que me valeu três aquisições muito legais para a lista de amigos loucos (falo mais dela qualquer dia desses)... a Renata, o Ian e o Inagaki. Falar o quê deles? Falar nada, ouvir, ou melhor, ler, que não tem muitas formas mais lícitas e louváveis de se aproveitar dos outros. Posso? ;o)



sexta-feira, março 02, 2001

Era preciso tocar o fogo...
Fogo medo e não dor. Calor muito obstáculo, movimento. Fogo parede imóvel tremeluzente. Era mais. Fogo de um mais sobre o outro. Cíclico infinito, eu em círculos.
Alma era no meio do fogo. Consumia e voltava e falava um fluido de luzes.
- Por que te assustas? Toma. É teu. – Não havia o que tomar, e era muito mais um se deixar tomar. Luz calor e medo, medo do não-fogo em volta.
O não-fogo era sempre grande, fundo, forte como um fim. Sobre fogo, sobre Alma. Urdido de nãos amontoados e escuros, ignorante de luzes muitas. Mas havia um senão oculto, ignorado de muito mas não de tudo, que Alma olhava com olhos de um saber velho e sereno daquelas enormidades. Ergui olhos tristes de ver que o fogo grande não tocava o não-fogo, ainda escuro, porém quente. Temi.
O não-fogo era sempre novo, espesso, certo como um não. Sobre vida, sobre tudo. Sabido de fins imaginados, temidos, absorvente de sonhos velhos. Mas havia um porquê discreto, dissimulado à vista mas não ao toque, que Alma tocava com dedos de um querer grande e seguro daquelas fragilidades. Abri braços lentos de achar que o fogo grande não minava o não-fogo, ainda inteiro, porém frouxo. Cessei.
Havia o de fora, frio e certo. Não-fogo todo e inteiro, e escuro e inerte. E era tudo. Sabido de ver mais do que conceber, que alma levava onde fosse em jatos. Sabido de olho e toque, os nãos eram ali, fogo dentro. Vez por outra era luz fugaz, de pouco estar fora, mas era, e forte, bela independente de raiz funda, e tão longe que abria cores quentes em todo o escuro, alvas muitas rápidas repetidas por sóis quase pequenos, não fossem as bases largas invisíveis. Vez por outra, e muito, e quase sempre, eram nãos, e escuro e espera.
- Abre os olhos, dá-te a ti, toca e olha. – Alma dizia o sempre, o nosso, que não haveria de ser mergulho louco, que louco já era o fogo, o vôo. Seria sim toque tato, descoberta. Toque olhado e sabido, e marcado em luzes nas mãos e nos olhos. Haveria de ser o não-se-temer em Alma, e em fogo.
E era fogo dentro a ser tocado, e era medo, e Alma nele. Alma tão nele que não se lhe via o fim. Tudo quente imóvel fogo-Alma vibrando descompassado. Bruto de intensidades fluidas etéreas, sem som, silêncio absoluto absurdo de trovão recente. Calor nos olhos, luz muita, medo sumindo. Tateei com os olhos, círculos em volta. Cíclico infinito, eu em círculos. Fogo nutrido de si mesmo e de Alma, crescendo nova nutrida do fogo, e sempre, cíclico infinito atemporal. Meu de se tocar.
Estendi-me e avancei. Não era preciso o toque. Ele era o próprio fogo.
Fora ainda e sempre escuro e espera.



segunda-feira, fevereiro 26, 2001

Não, de novo!
Mais uma vez, não!

Ahh... ta bom, eu explico. Zel sou eu, sim (Sorry, Zel, a – clique aqui pra ver -Original. O plágio foi inocente! ;o) Mas é tb o personagem principal de (adivinhem!) ‘CHAT ROOM – O Livro’. Ela se chama Zélia e eu não. De resto somos parecidas em quase tudo.

Zel personagem é ainda mais mulezinha do que Zel autora. Mulezinha não é o mesmo que mulherzinha, não confundam. Mulezinha é um conceito que eu finjo ter criado (claro que sempre existiu, sem o nome), e que digo ser um conceito netsociopsicológico. O pior é que há papocabeceantes que me pedem seriamente para discorrer acerca de netsociopsicologia. Minha imaginação precisava ser mais fértil e mais rápida!...rs

Mulezinha é aquilo que aprendemos a ser desde meninas. Uma mulher chamada Colette Dowling, se não me engano, chamou parte desse sentimento de 'Complexo de Cinderela'. Tudo bem, o meu é de Rapunzel, mas é similar. A mulezinha é frágil, insegura, susceptível a críticas, intimamente solitária, sonhadora, crédula por opção, romântica, doce... vou fazer uma pausa para q você possa limpar a calda que escorre no seu monitor...

Mas a mulezinha é extremamente arraigada e viçosa. Quase impossível matá-la dentro da sua hospedeira. Venho tentando fazê-lo há tempos, mas ela ressuscita periodicamente.

Esclarecidas as dúvidas do dia, segue o trecho:

“Havia uma fila enorme no caixa. Filas me irritavam terrivelmente, mas eu já havia decretado que, levasse o tempo que levasse, eu não sairia dali. Atrás de mim duas senhoras, aparentemente desconhecidas entre si, conversavam sem se darem conta (embora eu arriscasse um olhar de vez em quando) que eu as ouvia sem querer, mas atentamente.

- Ah, mas que falta de respeito uma fila desse tamanho! – Era uma mulher pequena, idosa, mas não o suficiente para a fila especial, ou talvez fosse daquelas que rejeitam essas filas por não se ‘sentirem’ idosas. Vestindo uma roupa simples e elegante, cabelos bem penteados, maquiagem leve, bijuterias. Fiquei imaginando por que uma senhora daquela idade se prepararia tanto para ir ao supermercado.
- Eles pensam que não temos mais o que fazer, imagine! – A outra era mais alta e magra, e mais jovem também. Mas parecia bem à vontade naquela conversa, na vagarosidade da fila, ao contrário do que dizia.
- Antigamente não havia toda essa modernidade, esse monte de computadores, e a gente não precisava passar por isso... – e pôs-se a dissertar sobre as vantagens de se viver no passado, enquanto a outra concordava. Eu ria daquilo por dentro, e de como somos gratuitamente resistentes ao novo.

Passei os momentos restantes conferindo os conceitos anti-modernidade daquela senhora, e os meus próprios, que caminhavam no sentido oposto sem colidirem exatamente. Eu sentia uma espécie de indulgência íntima, como uma sensação de admiração silenciosa e cúmplice diante do novo, do moderno, da tecnologia, e por que não, do virtual. Imaginei o tempo não gasto em bibliotecas e filas de banco, ou mesmo no trânsito, graças à Internet. Imaginei as pessoas fazendo amigos nas filas de supermercado, praças, bares e salas de chat. Lembrei de Ângelo e de suas idiossincrasias, marcas registradas daquela personalidade forte e única, mas que não encontravam eco na minha alma de pressas e urgências e palavras, que preferia o presente que o passado.
Ainda tive tempo de sorrir mais uma vez ao sair do supermercado, olhar para trás e ver aquela senhora pequena, quase doce, pagar suas compras com um cartão magnético de débito. Santa modernidade!
Cheguei em casa esbaforida – eu nunca conseguia andar devagar, nem mesmo quando carregava peso – e subi com um ar de quem acha água no deserto. Definitivamente eu gostava de estar em casa.
Enquanto tentava enfiar a chave no buraco da fechadura, utilizando técnicas recém-inventadas de equilibrismo com as sacolas, esbarrei o pé em um objeto rígido no chão. Estranhei aquilo, larguei tudo no chão e fui ver o que era. Não acreditei.
“Não pode ser normal uma coisa dessas”, falei sozinha, rindo, enquanto umas crianças que passavam no corredor cochichavam e olhavam.
Era um aquário do tamanho de uma bola de basquete, com pedrinhas, plantas e dois peixinhos. Um azul cintilante e um dourado com uma cauda enorme, como um véu. Colado com fita adesiva pelo lado de fora estava um bilhetinho escrito a mão:

"Zélia de carne e osso e alma,
Cuide bem de Slapi e Ima. Eles me disseram com os olhos que gostariam de fazer companhia REAL pra você. Mas acho mesmo é que querem que você lhes faça companhia (não conte isso a eles).
Ah, e esqueça as palavras, elas não são importantes, ok?
Abraços
César.”




o0o


sexta-feira, fevereiro 16, 2001

Não sei se é assim com todos os que amam as palavras, com todos que escrevem como quem come chocolate (Conheci outro dia uma moça que não gosta de chocolate. Tem cabimento?). Mas eu gosto muito de ouvir a opinião das pessoas a respeito do que escrevo. É claro que me derreto totalmente quando recebo elogios, e é claro também que os amigos acabam formulando mais elogios do que críticas. Mas gosto das críticas também.

Por conta disso - e, obviamente, do irresistível impulso exibicionista que toda forma de arte confere aos que a abraçam - publico trechos de meus escritos em todo e qualquer veículo que se me apresente. Assim, há alguns dias tive um trecho de meu escrito mais acalentado (Ihhh, lá vem a Zel de novo com 'CHAT ROOM - O Livro'!!!) veiculado em uma publicação virtual, que circula entre um grupo de amigos. Fiquei feliz e surpresa (mais feliz do que surpresa, felizmente) com os comentários que me foram feitos.

'CHAT ROOM' é uma narrativa feita na primeira pessoa. E a narradora, como vivo recontando, chama-se Zel. Mas apesar disso não é uma história real. Mas ainda assim, fico feliz quando alguém, depois de conhecer um trecho dele, vem fazer perguntas sobre os personagens ou a estória como se fossem reais. É como se eu tivesse conseguido o efeito que eu pretendia.

Algumas vezes fui consolada por problemas enfrentados pela Zel-personagem, recebi conselhos, ouvi críticas a este ou aquele personagem. E fico pensando em como tenho sorte por poder receber tanta atenção de gente tão especial (claro q só tenho amigos muitíssimo especiais, né?) sobre uma obra que ainda nem foi publicada. Este é um dos maiores presentes que esse mundinho virtual já me deu.

Conversava com um amigo (um destes muitíssimo especiais) a respeito do 'tempero' que se pode usar, perceber, acrescentar, saborear num texto, e fiquei pensando sobre o assunto. Escrevo com tamanho prazer que cada palavra, cada expressão que uso, é como aquele toque de sabor que é segredo irrevelável de qualquer boa cozinheira (perdoem-me os gourmets, sou caipira, viu?). Só que quem escreve é alma escancarada, não tem segredos que fiquem guardados muito tempo. No máximo se revelam cifrados, ininteligíveis, mas estão ali, no texto, sempre.

Lembrando da moça temperando a comida em "Como água para chocolate"...aiai...

Segredos e chocolates à parte, sigo aqui, escrevendo compulsivamente e alugando amigos desavergonhadamente para que me leiam e me ensinem a escrever para ser lida. Por isso é que logo abaixo destas palavrinhas, aparece o meu e-mail. Quer palpitar? ;o)