segunda-feira, junho 25, 2001

Olhou de novo para seus livros novos, brilhavam. Montes de vida que ninguém via. Ou via? Ouvia dizer do bom que era um livro e do conter palavras. Mas sabia que era mentira, porque o conter palavras era triste e morto. Contivera palavras muitas vezes, triste e morto, e doíam como espinhos. Tirar espinhos também doía, embora menos, mas não sabia então ali ficaram. Quentes rubros de dor aguda radiante. Silêncios túrgidos.
Era assim que os via, os livros virgens. Eram casas. Mas vivas, e isso de casas vivas é confuso e difícil como tudo o que é vivo. Viu-se casa viva e difícil. Livro virgem. Precisava que se lhes extraíssem as palavras para que se pudesse fazer habitar, mas eram espinhos queridos, e os abraçava. Verteu assim de repente um medo escuro e denso, e grande, de que também os livros virgens novos abraçassem as palavras como espinhos queridos, e não as libertassem, e não as entregassem e não fossem habitáveis, e então seria tão grande o desabrigo que nem o medo grande alcançava. Mas lá estavam, e os olhava.
Tocou-os de leve, cada um. Não eram seus porque não eram nada, assim fechados. Chorou sem lágrimas o não-saber de tantos, talvez todos, que solidão pequena não é solidão, daquela verdade mínima. O não-saber do nada que são as palavras contidas. Nos livros e nas almas. O nada que assola a Alma é só um monte de palavras-espinhos contidas, medo de ser. Invisíveis e inaudíveis medos de ser.
Era seu o trabalho agora. Eram seus todos os nadas ali em suas mãos, e deles precisava extrair abrigo e dor. E de si, quem o extrairia? Sim, que era em si o confuso difícil do que é vivo, e há que se embeber em coragem mão e olho para entrar nele. Coragem, onde mesmo? Talvez não em outro, talvez não em si. Descobriria um dia, decerto. Agora era descanso e espera sob o aberto dos livros novos, à sombra de suas palavras já vivas, porque já não tão contidas.

segunda-feira, junho 18, 2001

Peguei um vírus. :o(
E não foi um vírus de computador, não. Não teve McAfee, Norton, não teve site-em-inglês-onde-a-gente-só-entende-a-palavra-download que me valesse. Não teve verificação, varredura, lavadura ou enxaguadura que o detectasse na chegada, e chegou. Era vírus-vírus, mesmo, no sentido pré-histórico da palavra. Aquele que a gente entende com o corpo inteiro.
Veio e aboletou-se no recôndito enxovalhado da minha garganta, silencioso – o vírus. Aproveitou o escurinho e a maciez do meu epitélio cilíndrico ciliado e ali prosperou. Cresceu, multiplicou. As valentes cordas – pregas que não se assumem – vocais, mais usadas do que sapato de carteiro, mas sem direito de reposição, já haviam dado muitas vezes sinal de exaustão, mas jamais de desistência. Pois bem, fiquei muda.
Quando o sujeito fica mudo ele tem mais tempo pra pensar. Se for professor, ou algo assim verborrágico, tem ainda mais, porque fica sem serventia e vai pra casa. Perde-se um tempão falando, há caminhões de abobrinhas verdinhas e bem-nutridas jorrando em direção aos ouvidos avisados e desavisados. Há abobrinhas pensadas, também, mas essas não são tão nutridas, porque é o tráfego que as alimenta. Permaneci restrita a essas, então, ao menos até ouvir o “thrrrrrrrrrrrrrrrrrrróinhóinhóinh” do modem, e adentrar este mundo onde se pode conversar sem voz. Paliativo, que a gente gosta muito mais é de abobrinhar à moda antiga.
Meu hóspede parecia muito à vontade. Roubou a voz, devolveu metade dela, trouxe a tosse, prendeu o ar, usou o diafragma como cama elástica, a epiglote como cavalinho, os sinos da face como piscina... Aflição do corpo pra quem só andava acostumada às da Alma.
Resmunguei, reclamei. Intuí monstros debaixo da cama. Resgatei pesadelos da infância. Chorei, chorei. Magoei um amigo querido (toctoc... :oP). Errei na automedicação e melhorei. Corrigi o erro indo ao médico e piorei. Pedi à filha que fosse minha mãe. Usei a palavra ‘mãe’ 9584850595459 vezes em três páginas de texto. Fiquei dopada de remédio. Fiquei acordada de raiva. Fiquei pequena, pequena, quase microscópica. Aproveitei o tamanho pra ir bater um papo com o meu hóspede, mas ele não me recebeu. Resmunguei, reclamei.
Imaginei-me uma caixa de geladeira. Assim enorme, grandona, larga, imponente. Auto-suficiente. Com medo de ser derrubada por um golpe de ar. Uma caixa de geladeira duplex com o desenho bem grande de uma taça quebrada, sublinhada por letras grossas e pretas: CUIDADO,FRÁGIL.

quarta-feira, junho 13, 2001

Havia sido sempre o respirar palavras, e tinham cheiro, agora. Ar-palavra pesado e fértil. Pólen quase livre, leve errante, cadente em cheiro doce de sândalo ferido, dores de Axis. Talvez por isso os sorrisos tristes, sorrir de dores belas e raras, dores pérolas que não sabia bem se amadas ou odiadas. Sabia-as Alma, desejando-as como sóis.
Ia guardando uma a uma, delicadamente. Guardava-as às vezes tão fundo que doíam quase como no longe em que haviam nascido. Dor e cura, insolitamente cúmplices. Ungia-se desses cheiros-palavras de dor sobre dor. Um ir-sem-fim-de-ser-sem-fim. Depois as prendia túrgidas até a calma, que vinha longe, longe... longas horas de viver Axis.
Um tudo intenso, gritante, que não era dor de sofrer. Quis ensinar seu saber pequeno da dor quase alegre, e mostrava-se clara, anelante dos auto-olhos de ver. Existiam, sabia. Mostrava-se esperando um ver que era ver-se, Alma-espelho. Névoa de Axis, veria? Mostrava-se esperando-lhe quieta as luzes-palavras dos olhos. Dores ainda, não sem sofrer.

terça-feira, junho 12, 2001

Luz forte de água iluminada, chuva de ver e ouvir. Estranha e bonita. Axis Alma perto grande, iluminando-se. Vozes fortes leves, mais canto do que grito, sorriso e vôo, dormir medo e acordar salto. Alma vasta rarefeita espalhada por mundos muitos, tantos que só o olho contava.
(Sabia sempre o olhar de Axis, e era sempre sempre. Silêncio escuro oculto imóvel Axis vigilante. Ainda assim pedia luzes, Alma-sede urgência, criança de temer nãos.)
Agora era imagem, e quase olhava. Quase porque temia olhar forte, este de deixar marcas de urgência. Mas agora era imagem, sabia. Axis imagem e verdade trazendo mil cuidados doces claros imobilizantes de tão finos. Alma sorrindo quieta, depois lenta. Axis caminho de aprender a andar.

segunda-feira, junho 11, 2001

Ouvir era ouvir-se... ouvir-se... ouviste, Axis? Silêncio... Alma muito acordada, olhando em volta. Silêncio de não falar, guardar medos antes expostos, asas antes abertas. Noite e chão de muitos caminhos longos hesitantes. Não lhe pertencia o voltar, e o seguir era múltiplo monótono nevoento, de tantas vidas. Buscava um grito, ecos de Axis, vozes novas de vôo e não de chão. Noite de quietude clara calma cálida e tudo de sonho, abismo de si e de susto. Névoa e Axis todo olhar. E ver, e ver era ver-se... ver-se... verter-se pó e sonho, palavras, olhos portas comportas de transbordar. Axis sede e não, incognitude de olhar abismo, imóvel, oculto em luzes como quem venda os olhos.
Seguiu-o Alma, sabia-se espelho. Vivo e limpo de ser e dizer. Pensou-se espelho de olhar e mostrar Axis-voz de silêncios muito velhos. Pensou-se chamado e apelo, toque e grito, voz de acordar como Axis. Era Alma somente, murmuro débil, chuva de ver, de ser, não de ouvir. Pensou-se lua. Era pedra.
Quase dia, ainda escuro. Ainda silêncio em silêncio Axis. Via-o música e riso, ainda, mas era Axis-silêncio. Silêncio e cansaço, cobrir abismos e mundos e o tempo e sangue e fleuma muito estanques discerníveis inalcançáveis, e cansaço.
Gritou Alma um grito de querer doce triste calmo. Movia muito um dizer perplexo, descrença no imóvel, silêncio de sem voz. Gritou cansaços e já era tão Alma que de pequena só se lhe sabia o grito. Até calar grito e sonho.
Amanheceu, sono frio e trêmulo. Sacudir de pó e sonho. Caminhar sob olhos ocultos e fé calada. Espera nômade chuva de ouvir.

quinta-feira, junho 07, 2001

Via Alma o farto de palavras que era Axis, chuva de ouvir. Sabia-se espelho liso vazio de moldes e molduras, e eram-lhe as palavras como luzes e sombras. Alma imagem viva, vívida, e sombras e sonhos e sons. Axis-lugar. Palavras trazendo silêncio...

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O teu silêncio fala. Mais do que as palavras, talvez. É a mágica, o inexplicável que tanto se explica sem que a pergunta sossegue. O que é que faz nascer a afinidade? Como se fosse possível saber os porquês de entender silêncios, pobres de nós que nem realizamos o entender olhares.

Talvez seja o gesto recíproco de olhar para ver, mais do que para ser visto. Uma surpresa ágil de curto-circuito, luzes soltas profusas . Um disparo ruído de microfone que capta seu próprio som amplificado. Fluir. Captar-se amplificado. Mover oposto de fugir.

Talvez seja mais que o gesto, seja a freqüência igualdade de força e estatura.. Palavras indispensáveis sabendo-se insuficientes, humildes, cedendo lugar ao silêncio... shhh...

terça-feira, junho 05, 2001

Novamente a voz de Axis. Embora distante, ouvir mais intuído que real, real porque intuído, era clara. Voz firme de larguezas antigas, ecos de fé, força contida com esforço ignorada. Palavras dum fluir doce brusco de temporal, chuva de ouvir, fechar de olho insólito arriscado, abandono, medo como um fio. Falava falava um muito que era pouco porque um só. Sim, palavra única Axis. Sabia Alma de saberes muito esgarçados que era assim, e tinha de ser. Ouvir era ouvir-se.
Riu de novo. Era de riso raro restrito às horas de dor nenhuma, e via estranho em Axis o rir da dor. Mas ria, agora. Riso de Alma era fundo, belo de luzes e de poucos porquês. Agora Axis. Tinha de dizer-lhe do difícil que era estarem muito perto, forças de interagir equipotente, denso extenso crescente até um quebrar de angústia feliz, que é saber-se e também é dor. Mereciam-se.
Desde sempre desprezara os medos escondidos. Gostava dos ousadamente expostos, cuidados grandes de monstros de sombras de cantos de ventos. Gostava dos ventos, medos de Axis. Ágeis medos claros, transparentes respirantes, crescia neles. Um imperfeito vago de rejeitar mazelas perfeições, maior que o tempo.
Tempo rarefeito, tênue de fumaça muito branca, nuvem de esperas. Havia esforço e o tempo gemia, derretendo. Viu abertas muitas portas comportas, janelas rudes de guardar escuros. Um claro de ir e vir, e tudo novo. Palavras agora muitas, não sem dor. Vozes loucas de dentro, de grito e de canto. Música de ser.

segunda-feira, junho 04, 2001

Vai, pode ir. Pega o teu fardo leve e vai. É hora, e é tarde. Anda! Não me pergunte onde, que não sei, que nada sei nem de mim, mas sei do que podes, de um pouco do que podes. Do que não posso, sei tudo. Vai em silêncio, mas só dentro, aqui onde foste verdade. Leva a tua verdade-mentira, e procura pouso em lugar que te aqueça, que não gostas de frio.
Não te chorarei. Não há motivo. Vais porque tens que ir, que não és meu, mas de quem te acolha. És de quem quer que tenha a sorte, corra o risco, pague o preço. És de qualquer um e de ninguém! Vai! Leva minha dor e meu prazer, minha ânsia de vida e minha morte diária. Voa lento, que vejas o mundo. Tens tão pouco, e é tanto. Vê o de tão humano que há em tudo, que és tu mesmo fruto do humano.
Olhamo-nos com desnecessária profundeza, que éramos um. Mas por que tanto a dizer, não sei. Era o dito ali partindo sem pena, partindo fúrias e silêncio, partindo-me. Quis ir junto, tolices de Alma nunca antes tão pequena. Calei, em brados.
Se assombração não sei, tremi. Delírio loucura fantasia e ali palavras, letras vivas de vida minha, de pé à minha frente, desafio. Olhar altivo de muitos saberes ocultos, todos ali, num só, e me olhava. Não perguntei o que queria porque quem queria era eu, e tanto, tão longe, tão velho. Verso-gente de muita beleza e pouca razão, de respostas de Alma, que agora era sombra de medo e dor. Medo de dor. Me era leve aquele estar sem palavras, que delas o peso ia todo em verso, fora, mas eu sabia que por pouco. Tanto a dizer e nada digo.
Silêncio ainda, memória viva de quase sangue. Um quente espesso de muita letra antiga. Dor antiga gozo dúvida angústia tudo de antes e de agora, palavras de onde nem sei, tantas já havia abrigado. Vida que ferve longe e vem em vapor de palavras luzes sons incertos indigentes, voando procurando abrigo. E ficaram, vívidas dormentes indeléveis. Sempre pra sempre.
Vai depressa! Importa o que farão de ti? Importa o que farás, se vida ou morte ou névoa ou luz? Importa mais que a vida, mas é grande e não sei grandezas. Sei palavras lágrimas muito débeis, tua força toda sangue e seiva. Sei tua força minha, mas vais agora porque é tempo e nada mais sei. Pousa leve no teu destino, e dá do que tens ao que encontrares. Abriga-te agasalha-te mas não te protejas, que só te há de dar guarida quem sabe queimar em troca de luz de sol, de brasa sobre pele, sobre Alma...

domingo, junho 03, 2001

Parecia uma idiota. Pensou por um momento em qual seria o demérito de parecer uma idiota. Era já desde o segundo grau fato sabido que os idiotas são portadores de uma anomalia genética que lhes dilapida a inteligência antes mesmo que ela exista. Era claro então, se é que alguma coisa era clara, já nem sabia, que não há mérito algum na inteligência nem demérito na falta dela. Achou bonito parecer idiota e mesmo que não achasse não sairia dali. Não podia.
Os peixes iam e vinham. Flutuavam diante dos seus olhos como idéias, palavras dessas que fogem quando a gente se mexe, como respostas assustadiças. Não os tocava, mas quase podia sentir-lhes a textura escorregadia da pele. Peixes não haviam sido feitos mesmo para serem seguros por mãos humanas. Olhou para as próprias mãos espalmadas de cada lado da cabeça, unhas bem-feitas de brilho cuidadosamente simulado, como todo brilho que ousava demonstrar. Queria mais, um quê que não sabia. Só os peixes pequenos estavam por perto. Bom. Havia sempre temido as coisas grandes, as idéias grandes, o ser grande. Os seres pequenos lhe eram confortáveis, familiares. Queria que todos fossem seus, e riu do grande que era essa idéia confortável.
Era como estar lá dentro. Desejou um sonho – sim, já muitas vezes havia ousado desejar ou planejar sonhos, que já algumas vezes acabaram acontecendo sonhos de verdade do jeitinho que havia desejado, e era divertida a idéia de sonhar ao contrário, sonhalizar realidades. Mas agora desejava um sonho onde pudesse dar um passo à frente, só um, e entrar no gelatinoso fresco daquele mundo de vidro e água que agora só podia olhar. Tragada pelo mar forjado de peixes e respostas, faria parte dele e talvez fosse ela mesma uma resposta também. E era bom que sonho não tivesse tempo passando. Não gostava do tempo que sempre lhe roubava os agoras de que tanto gostava. Sem tempo era fácil estar ali entre um tudo de si mesma tão desconhecido quanto fascinante, tanto de tudo de si que era capaz de se amar, até.
Quase tocava o vidro com o nariz, agora, olhando nos olhos dum peixe grande, listrado. Ele não a enfrentaria, lamentou. Ninguém o faria, se soubesse. Mas não sabia ela, também. Nunca teria medo, se soubesse. Esperava que o dissesse, o peixe listrado de olhos redondos que de grandes e sem pálpebras pareciam susto, mas eram calma. “Senhora, não pode ultrapassar as cordas”. Redondos os olhos traindo a voz firme. “Senhora”. Não, era outra, que não se sabia senhora de coisa alguma. Talvez de algo que ainda precisava conhecer. Algo que talvez tivesse encontrado se o segurança do shopping não lhe tocasse gentilmente o braço...