quarta-feira, novembro 12, 2008

Sobre meninos e cactos



Uma vez ouvi algo sobre o amor e a necessidade de abraçar, mesmo que algumas pessoas sejam como cactos ao serem abraçadas, uma vez que o abraço dá em retorno ferida, dor e marca. É sobre algo assim que escrevo.

Sou professora de Ciências da Rede Municipal do Rio de Janeiro, lotada e em exercício de regência numa escola em Campo Grande. Uma das turmas sob minha regência nesta U.E. é a Turma 1607, da qual fazem parte os alunos X e Y. Os citados alunos apresentam há muito um histórico de indisciplina e desrespeito aos professores, colegas e seres humanos em geral, o qual vem sendo tolerado por todos nós assim como o de tantos outros meninos e meninas dessa e de outras escolas, dessa e de outras redes.

Hoje, 11 de novembro de 2008, durante a aula de ciências, X e Y mais uma vez se recusaram a participar da atividade proposta, X insistindo em sair da sala para beber água. Eu disse que se ao menos começasse a tarefa ele poderia ir, mas não obtive resposta. Continuaram as conversas, as provocações aos outros colegas, o deboche e risadinhas e a atitude hostil de hábito. Nenhuma dessas atitudes me trariam aborrecimento digno de nota, uma vez que, como dito, professores da rede pública SÃO AGREDIDOS MORALMENTE TODOS OS DIAS SEM DIREITO DE DEFESA OU REAÇÃO.

Uma das frases de X no decorrer da aula foi: “Estou esperando só a minha presença para vazar” (SIC). Ao chamar seu nome, anotei a presença e quando ele, já de pé e muito próximo de mim, perguntou pela presença, eu disse que a daria no final da aula. Ele se revoltou, começou a reclamar e se recusou a voltar ao seu lugar, e eu disse que ele somente poderia participar da aula sentado, e que caso contrário saísse da sala. Ele se recusou, prosseguiu com as provocações e quando saí para pedir ajuda ele finalmente saiu da sala, acompanhado por Y. Retornei, fechei a porta, e ambos imediatamente voltaram. Ao perceber que eu segurava a porta UM DELES (OU AMBOS) PASSOU A ESMURRAR E CHUTAR A PORTA, dizendo que iria entrar de qualquer maneira (com a porta fechada, não pude ver qual deles era). Tentei manter a porta fechada, e fingi ligar do celular para a diretora. Ao ouvir meu falso telefonema, ambos saíram correndo, voltando em seguida, talvez por perceber que eu não havia chamado ninguém.

Saí rapidamente da sala e gritei pelos funcionários da COMLURB, que eram as únicas pessoas no corredor àquela altura, dizendo que estava sendo agredida por um aluno, e um deles foi buscar ajuda. A diretora adjunta veio em meu auxílio e conduziu os dois à sua sala. Poucos minutos depois Sebastião voltava, invadindo a sala aos gritos de “Eu te bati?”, “É muito falsa!”, “Vai tomar no **!”, “F***-se!”, palavrões que também foram ouvidos por vários outros alunos da turma. Muito nervosa e me sentindo ameaçada, fui à sala da direção, disse o que acabara de ocorrer e me retirei da escola sem concluir as duas últimas aulas do dia.

Essa é apenas mais uma das muitas agressões morais, verbais e emocionais com as quais os professores, especialmente os da rede pública, vem sendo castigados cada vez mais freqüentemente. Fico pensando em até que ponto esse estado de coisas, onde a agressão só é assim considerada quando faz sangrar, quando leva o agredido ao hospital, precisa chegar para que comecemos a tomar alguma providência. QUE TIPO DE CIDADÃO ESTAMOS FORMANDO AO ACEITAR ESSA HUMILHAÇÃO? QUE TIPO DE RELAÇÂO ESTAMOS ASSISTINDO PACIFICAMENTE E MESMO ESTIMULANDO SE FORMAR ENTRE NOSSOS ALUNOS E SEUS SEMELHANTES?

Todos os textos para reflexão, debates, centros de estudos, reciclagens, revistas e livros pedagógicos atuais trazem a tônica da dedicação, do afetivo, da inclusão, do estar aberto à aproximação e às necessidades dos nossos alunos, o que é justo, válido e eficiente. Em 18 anos de magistério, 13 na Rede Municipal, aprendi a trabalhar com o coração e a me dedicar a meus alunos, mais do que a qualquer documento ou proposta escrita. Aprendi a dar e receber carinho e atenção deles, e a trabalhar em equipe. Tenho o privilégio de ser amiga de meus alunos e contar com a confiança e admiração da grande maioria deles. Minha dúvida/inquietação/indignação é: POR QUE NÃO SOU TRATADA PELO SISTEMA AO QUAL SIRVO COMO UM SER DOTADO DE SENTIMENTOS E DIGNO DE RESPEITO? POR QUE TANTO ESFORÇO PARA HUMANIZAR A RELAÇÃO PROFESSOR-ALUNO SE O PROFESSOR PERDEU SEU STATUS DE SER HUMANO?

Abraçar um cacto não é altruísmo. É conformismo e estupidez.
Magistério não é sacerdócio. É ajudar gente a crescer.

Por isso não abraço cactos. Prefiro gente.

3 comentários:

Anónimo disse...

Belo, verdadeiro e dolorido depoimento. Vou ficar pensando nisto algum tempo, e sei que escreverei sobre o que li. Minha solidariedade íntegra e integral.
Beijo.

Micoprego disse...

Um coiso desse no meu caminho já é motivo suficiente pra derrubar uma floresta de cactos e seus amigos monstruosos.
Tenho muita alergia a espinhos, tenho muitos deles na minha própria pele, mas eles não machucam a mim. (prático né?)
O mundo é uma alfândega e eu sou uma das malas, mas não quero aturar outras.
Admiro sua resistência, vc é muito forte (nenhuma mulher aceita "ouvir" isso).
BEijos MIl

Anónimo disse...

menina... que relato...
TÔ CONTIGO E NÃO ABRO!!!!!!
(sou assistente social... lido com gente e cactos o tempo todo)