segunda-feira, maio 07, 2001

Era preciso acostumar. Não, era melhor aceitar. Aceitar resignadamente que havia música, e riso, e vida, apesar do escuro que era dentro. Mas a essa altura já se ocupava de outra coisa, uma idéia que lhe fugia dos olhos como um inseto, zumbindo. Já não lhe era claro se valia ou não a pena recupera-la, já que era algo como um saber, e tanto lhe doíam os saberes. Mas havia música, toda acesa e inadequada, e riso incômodo, que não se importavam com o seu desprezo, e fluíam, tépidos, acariciando ousados os ouvidos e a alma.
Fechar a janela? Era mesmo provável que ao fechar a janela não lhe chegasse mais o som aos ouvidos. Mas não seria suficiente, já que o som ainda estaria ali, no silêncio, música e riso, e escuro dentro. Como se música e riso lhe celebrassem a escuridão, sem no entanto ameniza-la. Desejou por um momento ser menos, saber menos. Era provável que todo acostumar-se, todo aceitar, fluíssem melhor sobre um saber menor. E as idéias fugindo – ou chegando? – num esvoaçar farfalhante como nunca antes havia ouvido. Ventavam-lhe no rosto lembranças velhas, planos, perguntas, palavras desconexas, mas cheias de um sentido que não podia reter entre as mãos. Voava-lhe o sentido. Já não o sentia.
Até o limite, resistia. E escondia cuidadosamente a sensação de que era capaz de resistir além dele. Afinal, que são limites? Lembrava-se claramente de tê-los estabelecido, portanto, móvel que era, bastava faze-los também móveis, e seria tudo serenidade e correção. Resistia à música e ao riso como a uma propina, e ilicitamente a invadiam, e já eram marca de nascença. Tinha ao menos um silêncio íntimo, forjado, presunçosamente inerte. Ao menos ele era seu, e o escuro. Mergulhou então no silêncio como quem explode e era tão mínimo e tão seu que todo o resto quase não existia. Celebrou assim uma solidão única e blindada, cheia de dorezinhas miúdas e miúdas vitórias. Via-se, finalmente. Era, no silêncio e escuro. Ainda que não houvesse a quem culpar.
Esperou, mesmo sem saber ao certo pelo quê.
Sabia não haver nada mais fiel que o tempo, e passou. Música e riso eram perto, passando num fluir espesso de folia de rua, escorrendo para longe, morrendo aos poucos até cessar. Era difícil saber se o cessar lento era da música ou do ouvido. Silêncio dentro e fora, finalmente. Já era hora de chorar.

Sem comentários: