sábado, novembro 08, 2003

- Preciso conversar com você. Pode ser no domingo que vem?
Dela só me saltam claros à memória os cabelos. Muito lisos, de um castanho vivo, brilhante e úmido, sempre úmido nas manhãs de domingo em que nos víamos. Márcia era o seu nome. Minha mãe me dissera uma vez – não sei se desta fala foi que nasceu minha devoção – que sonhara desde sempre ter uma filha Márcia. Não teve por causa do aborto espontâneo de sua primeira gestação, o que a obrigou (de modo a espantar as más lembranças, acho, ou talvez os maus agouros) a sonhar para mim, fruto da segunda, um sonho novo. Perdi a oportunidade de ser Márcia então, e ganhei talvez aí uma incontrolável afinidade aos sonhos novos. Não foi mau negócio.
Mas então, dizia eu, chamava-se Márcia. Ia pelos quinze, dezesseis anos, e eu pelos doze, o que nesta fase da vida é uma diferença respeitável no sentido mais literal da palavra. Sim, porque nada mais respeitável quando se é adolescente do que outro adolescente, especialmente se for do mesmo sexo e três anos mais velho. Linda, eu achava. Impossível afirmar, já que só lembro dos cabelos castanhos, lisos, úmidos brilhando ao sol. Inteligentíssima, eu também achava. Estudava o segundo grau, tinha dezenas... Não, centenas... Não, devia ter milhares de amigos. Um dos mais chegados era o garoto por quem o meu coração saltava. Como era mesmo o nome dele?
Era o meu ídolo, a Márcia.
Não éramos amigas, exatamente. Colegas no grupo de adolescentes da Igreja, trocávamos regularmente cumprimentos amáveis e sorrisos. Mais essa: era amável. Doce, sorridente, falante, contrastante e ressaltante da minha timidez nevoenta que quase parecia antipatia quando se agravava. Agora ela me atirava o tal convite aos braços como uma noiva de antigamente atiraria seu buquê. Queria conversar. Não, não era um convite, era um pedido. Murmurei um “Tudo bem” polido, sorridente, mal contendo o impulso de sacudi-la pelos lindos cabelos castanhos para que me desvendasse o mistério que me consumia.
Seria o quê essa conversa? Um recado do 'menino dos meus olhos' (qual era mesmo o nome dele?)? Um convite para ir à sua casa? Talvez a subida ao Olimpo, o me servir de uma fatia daquela popularidade imensa. O me tornar amiga da que tinha milhares de amigos. Ah, eu não seria mais anônima, eu seria a amiga da Márcia!
Com muito custo, arrastadamente, olhos e alma prisioneiros da manhã do domingo seguinte, atravessei aquela semana interminável. O domingo raiou ensolarado, como eu previa. Saltitei para a Escola Dominical, que a essa altura nunca tivera menos importância, contando os minutos para o seu final, começo da minha nova vida. Bem antes disso, no intervalo, postei-me à frente da Márcia com meu melhor sorriso, aquele que dizia “Oi-estou-aqui-não-esqueci-que-vamos-conversar-daqui-a-pouco”. Ela veio como sempre, sorridente e amável:
- Oi, tudo bem? Aquela conversa a gente não precisa ter mais, não, ta?
- Não? – asfixiei – por quê?
- Nada, não. Não era importante.
Não era importante. NÃO ERA IMPORTANTE?!? Eu jamais saberia o conteúdo daquela conversa. Jamais soube. É assim no alto do Olimpo: Nada parece importante. Recolhi-me à minha insignificância para só bem mais tarde descobrir as minhas significâncias, algumas. Hoje sei um pouco mais sobre mim, e nada sobre a Márcia. Perdemos contato completamente pouco depois desse tempo. Embora confesse que esparsamente ainda me acometam umas velhíssimas faíscas de esperançosa curiosidade ao ver uma qualquer cabeleira longa e úmida cintilando sob um sol de manhã de domingo.

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