quarta-feira, fevereiro 07, 2001

A única coisa que me faz falta nos livros de papel, em comparação com a tela do computador, é o tal do ‘localizar’. É que eu tenho um defeitozinho de fábrica que por vezes me atormenta: a incapacidade aparvalhada de decorar o que quer que seja. Sou excessivamente infiel às palavras que leio. Elas me invadem, arrebatam, sacodem, aquietam, excitam, deprimem, machucam, acariciam, e nesse afã vão tomando a forma de meus próprios vazios, aqueles que preencheram. Deixam de ser o que são para serem o que eu sou sob seu efeito. Daí, decorar (ê, coração indolente!) é impossível, posso no máximo digerir.

Ah, como é patético ficar fuçando todas aquelas páginas à procura do que tenho certeza que está ali, e que me entrou como faca na alma, queimando, e ali ficou, mas é preciso o literal para mostrar aos outros o que foi dito exatamente. Daí o trecho que procuro, e que já mora em mim, mas não do jeito que eu preciso – ou melhor, que eu acho que os outros precisam - , ri debochado a cada vez que passa sob os meus olhos e eu não o vejo. Posso ouvir sua risadinha de escárnio, e morro de raiva porque sei que a vitória dele é quase certa: Eu vou acabar desistindo. Esses são dos poucos momentos em que lamento esse meu jeito corrosivo de apreender as palavras.

Acaba de acontecer algo assim. Quem ri de mim agora é a Clarice Lispector (ou será a G.H.?). Resolvi reler seus últimos capítulos, como que resgatando algo que ficou ali, nas páginas, sem que eu tivesse permitido que entrasse em mim. Resgatei, felizmente. Vi muito do que não havia visto antes, e me alegrei com o quanto a minha abertura ao texto era maior dessa vez. E entre o muito que foi dito, havia algo sobre a sensibilidade, e a indiferença.

E não houve forma de me fazer encontrar o trecho onde ela mostrava em suas reflexões a indiferença como algo a ser atingido, o prescindir das coisas e sensações como uma forma mais apurada de ser. De certa forma muito primitiva, muito enfumaçada, eu entendia, e apesar de desistir de saber exatamente que palavras estavam lá, sei que estavam lá. Então passei a refletir sobre a indiferença, às avessas.

A indiferença me aborda como algo incômodo e desconhecido. Não vivi a indiferença, em mim. Penso que não sou indiferente a absolutamente nada. As coisas, as pessoas, os fatos, as idéias, os sonhos, tudo me atinge e sensibiliza de forma quase violenta. Penso em uma forma mais apurada de ser, e quase lamento o fato de que quanto mais se me apura a existência, na minha maneira de ver, mais intenso é tudo.

Conversava ontem, não comigo mesma – pensando bem, acho que também comigo mesma – mas com um amigo muito querido e muito paciente, pelo icq:
- E o que vc sabe sobre vc???
- Sei que sonho em excesso... E que meus sonhos saltam dentro de mim qdo não os deixo falar... E que não posso deixá-los falar, então saltam, e me machucam... E que qdo dói, fico como morta, e encho de indiferença as pessoas q se aproximam...


Lembrando do que eu mesma disse, rio da idéia de que até a minha indiferença se alimenta da sensibilidade. O que não importa é fruto do que importa muito. Resta-me então um conformar reverente, ante os meus limites, que penso às vezes existirem para que eu mesma não exista mais do que minha trôpega Alma fraquinha - ainda que tão anelante sabe-se lá por que multidão de coisas,ou pelo todo desconhecido de si mesma - possa suportar.

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