quarta-feira, junho 05, 2002

Remexendo o baú...
Um texto antigo e esquecido (saudades, capitão), desses que a gente nem sabe mais que escreveu... publico aqui assim, de uma entornada só, mais pra mim mesma do que 'pras visitas', que espero que me perdoem o abuso do tamanho... ;-)



Muito Estimado Capitão Ramalhete

Espero que esta venha a encontrar-te gozando da mais perfeita saúde e segurança nesta longínqüa Austrália. Na verdade nem tenho como certo que o encontrará, haja vista o desconhecido do teu paradeiro, homem de tamanha intrepidez e espírito de aventura. Valho-me unicamente da fama transoceânica que já há muito envolve o Ramalhete, digo, o teu honrado nome.
Mas o que me move no escrever é hoje mais do que unicamente a amizade, muito embora seja ela motivo suficiente, não nego. Falando em amizade, cabe ressaltar a grande estima que lhe guardamos todos os da família, já desde o tempo do meu amado e finado Feliciano até os dias de hoje. Tanto de minha parte quanto dos pequenos Abigail e Terêncio, até - e mui especialmente - minha irmã caçula e única. E é Équidna, de fato, o que me leva a te escrever estas linhas. Não, não esta équidna que já decerto viste aí, bichinho gracioso, semelhante à andorinha, de formas belas e vôo majestoso - sabes que apenas repito de cor o conhecimento absorvido de nossos serões, tão zelosamente guardados aqui no fundo da memória.
Aliás, essa noite em que conhecemos o bicho-équidna foi marcante em muito, conto logo. Sabes, Capitão, que muitos dos conhecimentos ali adquiridos me foram já de utilidade vital? Não faz muito o Terencinho - ah, como me dá trabalho este menino - veio dizendo ter visto num dos alfarrábios da biblioteca do Padre João um capítulo que dizia ser équidna "um bicho estranho, quase um porco-espinho, mas com bico e botador de ovos, que no entanto mama e amamenta". Se engano ou peraltice não sei, mas é claro que pude fazer-lhe uma preleção severa e um castigo moderado, e o episódio não nos pôde arrancar aos olhos a beleza e graça que aprendemos de tua experiente sabedoria.
Ah, sim, falava eu de Équidna. Équidna não-bicho, isso. Équidna minha irmã. Ah, não sabias ser Équidna o nome de minha irmã? Não te assombres, poucos sabem, e se não o revelamos no momento oportuno foi por cuidados meus e timidez de Équidna. Chamamo-la carinhosamente 'Dininha', desde a mais tenra infância, por conveniência, e julgávamos ter sido motivo do nome algum erro de nosso finado pai quando do batismo. Não nos parecia possível que existisse um nome assim estranho. E agora, às vésperas do trigésimo terceiro aniversário de minha irmã, surge a novidade. E pensas que foi para Équidna vergonha ter nome de bicho? - atente para o fato de que também eu o tenho, e portanto não me passaria pela cabeça caçoar de minha irmã - Pelo contrário. Exultou pelo nome não-inédito, e agora não há o que lhe ocupe mais os pensamentos do que conhecer de perto, "de vista, mão e cheiro", como diz a própria, o bicho que lhe deu o inusitado nome.
Cesso por um momento o relato das angústias familiares para uma breve reflexão. Tivéssemos eu e Équidna irmãos homens, dado o presumido gosto de papai pelos animais iniciados por 'E', que nomes teriam? Elefante? Esquilo? Até que não nos foi tão rude o destino.
Oh, Capitão... volto à pauta esclarecendo que não será sem constrangimento o meu esdrúxulo pedido, que já lhe deve rondar os miolos a essa altura. Fa-lo-ei já, falo antes de Équidna um pouco mais. Minha amada irmã, sabes bem, é de saúde frágil. Chego a folgar secretamente - não sei se peco - no fato de não ter sido a ela concedida a ventura do matrimônio. Não me tomes por desnaturada, que me explico. É que precisa de cuidado, a pobrezinha. Não suportaria a atarefada rotina de esposa e mãe, embora - conto-lhe secretamente, conto com a discrição de costume - eu tenha cá comigo a impressão de virem daí, da falta, digo, da falta da rotina de esposa e mãe, muitos dos azedumes e flagelos que a ela teimam em assaltar. E são tantos, Capitão! Teve febres, dia desses. Dores tantas, indigestões. Terrores noturnos, eventualmente. Pesadelos, muitas vezes. Ah, Capitão, quisera eu conhecer a causa e a cura de tão grande mal...
Alívio sutil foi concedido pelos céus a minha querida irmã nas últimas semanas, desde que se soube homônima do bicho australiano. Graças ao belo desenho - lembras-te do desenho? - que tão apressadamente fizeste, até hoje guardado como relíquia no baú de lembranças do quarto, não há na família quem não conheça as suaves formas da équidna, entenda-se, o bicho. Bordada em toalhas e guardanapos, pintada em telas e - pasme - até riscada a traços de carvão na parede do quarto! E os escritos? Poemas, odes, acrósticos, elegias e todo tipo de louvores ao mimoso bichinho. Agora as idéias de viagem, que muito me assustam. Imagine que Équidna sonha - somente dormindo, presumo de ouvir-lhe as falas da madrugada - ir à Austrália! Ah, a Austrália...
E aprouve aos mesmos céus, Capitão, meu bom Capitão, justo nesse momento crucial da vida de Équidna, enviar-te a ti à terra do bicho-nome. De posse deste saber. e do saber de teu já conhecido espírito de solidariedade e amor ao próximo, é que venho pedir-lhe o obséquio de realizar o sonho de minha irmã, Não o de ir a Austrália, que a ela falta saúde e força, mas o de conhecer de vista, mão e cheiro o bicho cujo nome lhe foi dado. Peço-lhe encarecidamente o favor de vir ter com Équidna, trazendo-lhe de presente o objeto de todos os seus sonhos recentes: Uma équidna-bicho, ou filhote, ou ovo. Algo que encherá de alegria os dias e o coração solitário de minha irmãzinha. Creio e tenho certeza de que tanto a tua presença quanto a do mais belo animal já visto por olhos humanos, esta beleza da qual minha irmã teve a sorte de herdar o nome, hão de tornar a nossa Équidna a mais feliz das almas.
Encerro aqui esta singela carta, rogando aos céus pela tua saúde e breve retorno
Respeitosamente,

Ema D'Albuquerque Feliciano

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