quinta-feira, agosto 09, 2001

Parecia água. Filtrava os raios de sol do mesmo jeito, aquele jeito maroto que a água tem de fazer as coisas parecerem maiores do que são. Ou de fazer com que pareçam estar onde não estão. No vidro fechado parecia água porque a tampa impedia que se lhe escapassem os vapores, o cheiro forte de formol que por associação era capaz de denunciar a morte antiga que ali dentro estava guardada. O feto jazia imóvel ali há pelo menos dez, doze anos, e muitas vezes despertara nos observadores mais imaginativos conjecturas sobre como seria ou onde estaria este menino – sim, era um menino – hoje, se tivesse permanecido dentro da mãe, e nascido, e crescido...
Mas não havia sido assim. E ali estava ele, objeto de observação cuidadosa de professores e de alunos adolescentes do segundo grau. Aliás, parecia até contraditório, levando-se em conta a maioria, relacionar a observação cuidadosa aos adolescentes. Mas era assim, especialmente agora.
Não devia ter mais do que quinze anos a moça, ali acocorada atrás da mesa do professor, onde ficavam as prateleiras baixas com os vidros de formol. Entre as duas mãos o vidro com o menino, quase colado ao rosto, e o olhava, absorta. Cena nem tão incomum se o olhasse, como quase todos que o faziam, com curiosidade. Mas era olhar de derrota. Parecia que ela conversava com o menino, que o olhar a havia transportado para dentro do vidro e ela ali nadasse com ele, dolorida. Não percebia os colegas, não ouviu o sinal indicando o início de uma nova aula, não viu a chegada da professora nem a perplexidade dela, menos por presenciar aquela cena do que por compreende-la. Plenamente.
Segundos infinitos se passaram entre a entrada da professora e a volta da aluna ao seu lugar. Enquanto aguardava que a moça lhe permitisse o acesso à sua própria cadeira, a professora teve a lamentável sorte – há sortes lamentáveis, como aquelas que nos fazem saber o que preferíamos ignorar – de ler claramente a história que, já escrita, se mostrava no olhar da moça. Não tocou na aluna, não disse nada, e inexplicavelmente nenhuma outra pessoa naquela sala o fez, ao menos que tivessem percebido. Passado o tempo necessário para que se concluísse em ambas o que precisava ser concluído, a moça voltou para a professora uns olhos enormes, imensuráveis, brilhantes, profundos como abismos. Conversaram longamente, trocaram confidências, choraram juntas, tornaram-se cúmplices, tudo isso em não mais do que três segundos. Coisa de mulher, diriam os que o pudessem perceber, que há palavra que só elas têm, lembrança, história que só elas vivem, dor que só elas sentem.
E não há homem ou mulher capaz de saber se assim é justo. Nem há tempo. Bom dia , turma! Hora de começar a aula...


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