quinta-feira, agosto 23, 2001

O conto se chamava ‘Perdoando Deus’. O problema da Clarice Lispector é que as letras dela batem na gente e tiram lá de dentro outras letras, que começam a pular em desordem barulhenta, e quando se percebe já não se está mais lendo, mas escrevendo com os olhos. Era só o que eu precisava. Escrever com os olhos. Não que seja ruim escrever com as mãos, mas neste caso – e tanto o tenho feito, prazer abafado feito sexo com camisinha – não se voa, e é voar que me interessa, sempre.
Então as letras me faziam escrever com os olhos, e fiquei feliz porque nestes escreveres é que tenho certeza de poder achar as palavras que ando procurando, ávida. Dependendo de para quem ou sobre quem se escreve há muitas, muitas palavras que não servem. Muito secas, frias ou quentes demais, preguiçosas ou excessivamente ágeis. Andam caprichosas as palavras, onde irão parar? Eu procurava palavras fortes e doces, que portassem mesmo não ditas um certo ar tarado-elegante que forjado – e eu nem sabia que sabia forjar – me prendesse na pele aquele olhar que eu já sabia atento. Minha pele palavra. Mas quais?
Estariam certamente nalgum escrever com os olhos. Ah, sim, o conto era ‘Perdoando Deus’, e nesse livro eu vinha marcando as páginas com uma etiqueta, que eu colava na página seguinte à que eu lia. Dessa vez, terminado o conto anterior, eu a colara sem querer sobre ‘Deus’, no título que eu já sabia qual era. Mesmo assim cedi ao ritual de ler o título, levantando cuidadosamente a etiqueta e lendo ‘Deus’. Tratei de devolve-la ao lugar, e agora era só ‘Perdoando’, e eu também gostava. Prossegui. Mas aí já não lia.
Quando as palavras – certas palavras – chegavam , acordavam as palavras de dentro, que iam umas acordando as outras num efeito dominó ensurdecedor, e nada saía ou entrava, palavras congestionadas e eu ali, só sendo feliz. Tratei de fechar o livro, mesmo temendo pelo tudo que se abria em mim, mas eu sabia que era tarde e inevitável. Elas estavam aqui, serenas e cúmplices. Soberbas, autoritárias, insuportáveis.
Cheguei a sentir o sabor das palavras novas. Vi suas formas e cores diáfanas esvoaçantes. Quase pude toca-lo. Fugia. Dançava, forte, doce. Tentei detê-lo ainda. Sorria. Soube mais do que já sabia, que o olhar atento o é, sempre. Mesmo sobre palavras não ditas.

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