segunda-feira, outubro 27, 2003

Ando investigando a vida de Dhea. Nada contra um pouco de mistério, mas cabe a todo e qualquer personagem, penso eu, o dever mínimo e irrevogável de dar-se a conhecer ao menos ao seu autor. Personagens moram nos autores sem pagar aluguel, nunca por pouco tempo, porque nunca é rápido que ficam prontos para ir embora. A maioria fica pronta um dia. Então vai, não sem deixar marcas pela casa, de desenhos a lápis de cor pelas paredes a gravações a canivete nas colunas. “Fulano esteve aqui”. Como se pudéssemos esquecer.
Dhea não. É caprichosa, e foge e se mostra. Não me permite esquece-la, nem toca-la. E zomba de mim, porque sabe que há coisas que ela entende e eu não. Às vezes aparece no meio de um pensamento que nem precisava dela. Às vezes some no meio de uma conversa lenta, difícil, atravancada, mas tão necessária. Ela não é má, é só inconseqüente.
Então passei a espiona-la. Vasculho ruas e praças em mim à procura de pistas. Interrogo meus sonhos, lembranças, idéias. Examino todas as imagens, ouço todos os ruídos. Trabalho incansável, de frutos escassos, mas tão belos. Dhea é fascinante, e sabe disso. Às vezes imagino que ela sabe sobre a minha investigação, e se diverte. Às vezes acho que ela também me investiga, e que talvez saiba mais sobre mim do que eu sobre ela. Talvez saiba mais sobre mim do que eu mesma.
Claro que é assustador. Mas o que é escrever senão coragem extrema, ou talvez loucura? Loucos não se assustam, ao menos não com o que é assustador. Então prossigo, serena e decidida. Em breve terei um dossiê completo. Ou incompleto. Sobre Dhea. Ou sobre mim.

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