segunda-feira, outubro 20, 2003

Tudo sempre volta. Ao menos tudo o que é real. Sempre volta. Os sonhos voltam, renovam-se os cenarios, o enredo, talvez. Mas la estao, de novo e de novo. Era incrivel ter sonhado de novo com os passaros. Com tê-los matado, ou tentado. Era mesmo um sonho horrivel, mas era estranho chamar de pesadelo porque nao havia angustia, nao havia resistência. O sonho fluia tranqüilo, soberano. Passaros semimortos, que nao reagiam. E aquela firmeza no proposito de os matar, sem vontade e sem sofrimento. Era preciso mata-los. Por quê? Nao importava, era preciso, por mais que ser preciso sem porquê parecesse insolito. Sem prazer, sem dor, sem nada. O nada fluia tranqüilo, soberano, e matava os passaros. Era o mesmo sonho, de novo, e sabia bem deles, velhos conhecidos. Passaros-sonhos, passaros-desejos, passaros-ser. Passaros-ser-o-que-se-é-e-nao-o-que-o-outro-quer. Mata-los era uma aniquilaçao imensa. Um autossufocar tao completo e tao duro que certamente nao seria capaz de faze-lo contra qualquer outra pessoa. Estranhamente eles, passaros, nao morriam. Nem viviam, ficavam ali moribundos, o tempo estagnado também. O sonho, antes e agora, terminava assim, como assumindo seu lugar de grito, de alerta, de alarme. Era preciso, é preciso salvar os passaros, e salva-los nem é assim tao heroico. 'E nao os matar, somente. Deixa-los ser, por mais que ninguém os queira ou entenda. Deixa-los voar, por mais que o vôo pareça dor. Por mais que seja tao desmedido o medo quanto o seria o nada reservado em sua morte. Deixar-se voar, deixar-se ser. A vida enquanto ha vida, o céu enquanto ha céu. Deixa-los voltar, bem-vindos, incômodos, vivos, ensurdecedores, férteis, ardentes, ousados. Fluir tranqüilos e soberanos. O passaro é maior que o sonho, e volta. Tudo sempre volta.

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