terça-feira, outubro 28, 2003

Fuçar pastas e pilhas de papéis esquecidos é exercício quase inevitável, sintomático, quando a gente se reconcilia com a vontade/vício/missão/necessidade de escrever, depois de meses de indolência confortável e sufocante. Pois então, dessa vez foi uma folha de bloco, e rascunhada e rabiscada em caneta vermelha a crônica de dois momentos reais transformados no texto em um. Momentos tocantes de tão simples, e talvez por isso mesmo tão marcantes.
Antes: o meu Word não conhece ‘rabiola’. Perguntou se não era rubéola. Tentei explicar a ele que o que eu chamo de rabiola é aquela linha pendurada nas pipas (papagaios?), cheia de tirinhas de papel colorido, sem a qual a pipa não pode voar, ao menos não do jeito que a gente espera que ela voe. ;-)

Finzinho de tarde quente lá fora. Embolada no fio da rede elétrica, bem na frente da janela, uma rabiola esquecida, há muito desgarrada da pipa para a qual fora feita. Agitava-se um pouco com a brisa.
-Mãe!
A mãe olhava para fora, absorta. Ficava assim muitas vezes quando aflita. Mar revolto sob serena superfície. Talvez não olhasse coisa alguma, e o olhar fosse daqueles que atravessam as coisas aos giros, retornando depois para dentro. A filha observava decidida, inquisidora, insistente, forte como só se é antes dos dez anos de idade. Era a mais suburbana das cenas, porque só no subúrbio é concebível rabiola embolar na rede elétrica. Mas nenhuma das duas pensava nisto. Não conscientemente.
Também não pensavam na solidão, nos mundos inteiros que inter-representavam, ou no tudo que se pode ou se deve ser para alguém. A mãe pensava na vida. A filha pensava na mãe.
-Mãe! Você ta nervosa?
-Tô, sim, filha. Mas já passa.
-Mas por quê?
Inquietação é coisa que não tem porquê, no fim das contas. Ao menos nem sempre tem. E nem merece. Algumas vezes ela é assim, incógnita. Chega e se instala sem maiores explicações. E ali reina, flagrante e inexplicada. E sob ela é que a gente é tomada de um tal desinteresse pelo controle do próprio destino que acaba arranjando mais e mais formas de se inquietar. Sim, prolifera-se, solo fértil que é a gente que se entende frágil. E se viver dá um trabalho danado, dá também prazer... e dor, e riso, medo e desejo, e sonho... e inquietação.
-Nada demais, amor. Umas contas aí pra pagar...
Outro dia teve um sonho, a mãe. Falava a uma platéia numerosa e interessada a respeito do seu melhor projeto de trabalho. Falava brilhantemente, avaliou. Repentinamente a assistência começou a se retirar, em grupos, feito líquido escoando do jarro que quebrou. Acordou entre lágrimas e inquietação inexplicada. O problema é o futuro, sempre... mas por quê?
-Feliz é a Wanda, né, mãe? Ela não tem contas pra pagar.
Só tem inquietação quem tem sonhos. Mínimos que sejam. A Wanda não os tinha, de fato. Doente mental, morando na rua, perambulava desde sempre pelo bairro. Conhecida de todas as crianças e da maioria dos adultos da vizinhança, agora ocupava nesta pequena família o inusitado posto de símbolo. Símbolo do que não lhes faltava, das dores que não tinham, dos sonhos que ainda – e sempre – podiam cultivar.


Felizes os pais aprendizes, e seus filhos tanto mais sábios quanto mais jovens.

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