quinta-feira, janeiro 18, 2001

Discuto comigo mesma a respeito do talento, do poder e da dor que ele representa. O que é que move o artista? Os autores, por que escrevem? Que mistério é esse que faz com que qualquer artista quando interrogado a respeito de sua arte, de como ela acontece, responda com um ‘não sei!’?
Tenho há muito tempo uma ponta de texto que se insinua e não sai, não se materializa. Expliquei hoje para mim mesma, enquanto fazíamos (eu e eu) nossa refeição de dúvidas logo cedo, que textos não são feitos de palavras. Eles as vestem! Cobrem-se delas para poderem sair na rua.
-Imagine só – dizia eu – Um texto em plena rua, despido de palavras. Que escândalo!
-Nem consigo imaginar – respondo eu – mas não deve ser bonito de ver – e rimos, as duas.
Mas é verdade. O texto existe dentro do autor, numa dimensão e numa forma que nem ele mesmo conhece. Por isso é que às vezes adoecemos de palavras, ou da falta delas. Congestionamento de idéias...
Meu texto insistia, lutava. Queria ser lido, ouvido. Queria sair. Textos podem ser muito rebeldes às vezes. Então ele vagava por toda a minha alma, abria e fechava as portas com um barulho terrível, agarrava-se às grades – infelizmente ainda as tenho – nas janelas. Só não gritava porque os textos nus são também mudos.
E eu aflita, suplicante. Massacrada pela crise de rebeldia, a alma toda bagunçada. Eu procurava algumas palavras que acabassem com aquela tortura. Não havia palavras que servissem. Tamanho errado, modelo errado, cor errada (é, as palavras têm cores!). Tento escolher alguma coisa que sirva. Organizo, lavo, passo, componho o melhor que posso a minha produção. Não muito satisfeita, peço a mim mesma que me ajude a abrir a porta, para que ele saia. Tamanha a agitação do pobre, como a de um macaquinho numa gaiola, que até abrir a porta sozinha fica difícil, e preciso contar comigo. Enfim, conseguimos.
Observo o texto saltitar para o papel, vestido das palavras mais belas que pude encontrar. É lindamente maltrapilho aos meus olhos! Indigente como a própria alma onde nasceu. Ei-lo tão meu, e tão seu, leitor querido, que fico imaginando se, ao entrar em você, ele não irá despir de novo as palavras e descansar placidamente nalgum canto da tua alma.
E quem sabe, um dia, já recontado, refeito, renascido, inicie em você uma nova luta pelas palavras, e pela liberdade


Rio de Janeiro, 11.12.2000

Alma dormiu, e sonhou...
A caminho do sonho, ainda no meio da névoa que separa realidade de fora de realidade de dentro, encontrou surpresa um vento que falava.
- Ora, vento que canta eu conheço, mas vento que fala?
- Sim, na verdade sou um vento que pergunta. Que te faz sonhar hoje?
- Sonho dos medos da infância, das perguntas sem resposta, das urgências sem socorro. Sonho a saudade do que não sei.
O vento soprou, e carregou Alma, e eram pedras muitas, uma torre. Entardecia.
Perguntas eram sem respostas todas e se faziam ouvir feito uma cigarra que conta a outra cigarra que entardece, e a outra e mais outra conta e canta e é tanto canto que tudo que se ouve é cigarra.
Janela e pedra, e era tudo a torre.
Alma na janela espera, quem sabe pelo quê, ou por quem? Quem sabe até quando?
Que importa saber?



São Paulo - 05.01.2001

Chamei por Alma e não ouvi som algum. Havia um som que não se ouvia, fundo, tênue, e eu percebi que precisava mesmo procurar.
Sobre encontrar não sei, mas procurar é o que há muito faço, incansável, embora muitas vezes quase desistente. Se fosse absolutamente honesta – e desde há muito que o tento ser – admitiria que muitas vezes desisti de tantas procuras.
Mas dessa vez ali estávamos, eu a havia encontrado, ou ela a mim, e eram perguntas, muitas. Era assim sempre que eu a encontrava, um desdobrar de dúvidas, um conhecer tão grande que só podia ser mesmo conhecer, nunca compreender, nunca verbalizar. Eu desejava voar e não sabia por que o desejava. Eu queria saber sobre os vôos de Alma.
- Mas é claro que sei voar! Não voas?
Era a primeira vez que Alma me falava daquela maneira. Não me parecia que ela realmente o tivesse evitado até ali. Em minhas mais remotas lembranças, naquelas de quando, tanto tempo antes, eu pausava meus jogos de menina e olhava Alma, tão demoradamente quanto me permitia minha pressa de não sei o quê – e até hoje não o sei - via-lhe o rosto belo e antigo, de serenidades superpostas, não apenas amontoadas, mas trazidas de sabe-se lá onde e ali deixadas, talvez somente para que eu as visse. Essa imagem me aquietava ao mesmo tempo em que me acendia perguntas que eu imaginava conseguir fazer-lhe um dia. Não parecia, realmente que ela tivesse tido a intenção de evitar coisa alguma, talvez esperasse somente o meu momento.
Era pequena Alma, minúscula, talvez pelos muitos anos. Eu a via grande, gigantesca, e pensava ao mesmo tempo em que a ouvia, bebendo-lhe as palavras, se era assim mesmo que a viam os outros. Respondi sua pergunta com um gesto negativo muito vago e ela prosseguiu.
-Sei voar, mas não é sempre que posso fazê-lo, nestes dias... Houve um tempo em que eu voava constantemente com os pássaros, e os conhecia a todos. Hoje já não é mais assim. Há limites hoje, amarras.
Amarras me angustiavam, e Alma o sabia. Eu tinha muitas histórias de amarras e cadeias, e vazios. Momentos não vividos, coisas não conhecidas, cadeias tantas, e algumas tão minhas que era como se eu mesma as tivesse escolhido. Lamentei no íntimo por todas as amarras auto-impostas, que já sabia serem as mais duras, as mais pesadas. Alma não sorria, mas tinha nos olhos a expressão de quem me ouvia o não dito.
-Não há muito a lamentar, que muito aprendi e conheci, e posso dizer-te hoje. Voando se pode muito, se sabe muito.
Levou-me inexplicavelmente a um alto quase indistinguível, que eu já não sabia se olhava do alto de minha janela ou do alto de minhas razões e verdades, mas a verdade é que eu podia ver com incômoda clareza o que se passava com as pessoas lá embaixo. Onde era lá embaixo?
- Vês? Esta é a Cidade, estas as pessoas – mostrou sem apontar. Este é o mundo, e são estes os mundos ínfimos, infinitos de todos e de nenhum, de cada um.... Solos e fragmentos, um imenso deserto e nele grãos incontáveis e impiedosamente diminutos. A solidão era assim, múltipla.
Olhei, e nada vi. Senti-me eu mesma a Cidade. Apenas algo disforme e distante e móvel, como um formigueiro ou um mar de lava. E era assim mesmo que eu via, tendo diante dos olhos a absurda organização construtiva do formigueiro ao mesmo tempo e completamente misturada com o caos destrutivo do mar de lava, o fervente silencioso, o ininteligível.
Pensei em pedir-lhe emprestados os olhos, mas resisti, que já sabia de sua convicção férrea e tantas vezes expressa , quer em palavras, quer sem elas, de que os olhos são coisas que não se emprestam. Não por egoísmo, mas por cuidado. Alma conhecia os meus olhos, e forçou-me a usá-los em tudo o que podiam. Olhou-me apenas, e entendi. Limpei os olhos de todo o já visto. Ardiam, mas era preciso, e com esforço fixei-os de novo.
Via agora, mas ainda não compreendia. Havia naquelas imagens uma beleza fria e dolorida, um silêncio claro de neve caindo, um leve de neblina, mas de muitas cores, de prismas, arestas cortantes. Senti pena, e culpa. Quis saber do que eram todas aquelas dores, e se eram sabidas pelos que as levavam.
- Desce agora – e flutuei lentamente.
Eu era agora parte do que via. Alma não me acompanhava, mas eu a percebia, estranhamente múltipla, entre aqueles vários mesmos e repetidos que por mim passavam, senti o quanto todos somos sós, ainda que muitos. Sós em nossas convicções, que é esforço e sangria o tentar fazer-se entender, como se fazer-se entender fosse de algum proveito num mundo onde o outro é nada. Sós em nossos desejos e vontades, em nossos sonhos. O frio leve e as arestas eram invisíveis agora, mas cortavam , e eu pensava em sonhos.
Sonhos são o que há de mais solitário. Ninguém sonha junto. Compartilhamos, verbalizamos, transformamos, conduzimos, destruimos ou forjamos juntos nossos sonhos, mas não é juntos que os sonhamos. E mesmo dar a conhecer sonhos a outro, mesmo muito querido, é tarefa difícil. Conhecer é cansativo, também... é dar ao outro o lugar de centro... mas é bom, dizemos, e o buscamos, ao menos em momentos.
Quis voltar de novo ao alto de minhas verdades, mas já não as tinha. Havia olhado muitos olhos, e com olhos de ver, então não podia mais voltar atrás. Chamei por alma e não ouvi som algum. Havia um som que não se ouvia, fundo, tênue, e eu percebi que precisaria procurar.
Sobre encontrar não sei, mas procurar é o que desde então faço, incansável!

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