segunda-feira, janeiro 29, 2001

É engraçado, estranho, diriam, mas cultivo mesmo o hábito de conversar comigo. O mais interessante é que essas conversas são tão mais intensas quanto menor é o meu nível de consciência da realidade. Isto quer dizer que, se acordada, divago banalidades, e quando dormindo, não sei, que quase nunca me lembro do que sonho.
Mas existe um alpendre, um estado de subconsciência mole e tépido, uma água morna densa crescente, de luzes difusas e cores amortecidas. Um estado de inatingibilidade tal que é possível somente aí, no acordando e no adormecendo, estar a sós com esse eu que tão pouquinho conheço.
Em noites agitadas é mais rico, que se repetem tanto as passagens até que eu me aprenda um pouco. As lembranças não importam, que sejam fragmentadas e esmaecidas ao intelecto, mas dentro sei que sei mais. Lembro no entanto, fragmentada e esmaecidamente, de de mim mesma ouvir sobre escrever o que sou. Ora, escrever o que sou é coisa que faço de sempre, de há muito. Mas agora era escrever o que sou em grandeza e diversidade, e rio. Como se Alma, aquela fictícia dos meus escritos loucos, viesse alma verdade a me ensinar enquanto subacordada. E me fala de grandezas e diversidades enquanto o tudo que me conheço dentro é de um pequeno e monótono flagrante, e tão contado. Rio.
Entendo ao lembrar assim pouco - e lamento tanto o não poder escrever dormindo - que eu-Alma me fala, e tem falado, a respeito de grandezas várias, inerentes ao humano, e esquecidas. Penso, recordo, comparo e ainda que não conclua, registro, tanto do que tenho felizmente tido ocasião de trocar com amigos sobre o humano. Amigos me são, muitos deles eventualmente, muito poucos quase sempre, mas todos professores de vida. E tem sido assim, muito. Falar da natureza humana, de mazelas e medos, e encontros. Aprendo nessas horas sobre homens e mulheres, e amar ao outro e a si mesmo, e viver, e construir, acertar e errar. Imagino que seja esse mesmo o motivo de existir uma humanidade assim, coletiva e diversa, para que aprendamos com o diferente.
E atino agora, claro que não inicialmente, mas um novamente com ênfase no novo, que desses aprenderes acolho fragmentos imperceptíveis, como minúsculos fios dos quais teço verdades íntimas enquanto converso longamente comigo mesma.
- Oh, que lindo isso que teces! - é de fato coloridíssimo e luminoso.
- Lindo e difícil, mas vale tanto a pena! Aceita mais um pouquinho? - São dúvidas doces, muitas sem resposta, mas saborosas, e eu aceito.
E é mesmo vasto e diverso o eu. Os eus, e falo de mim mesma porque é a mim que tenho acesso, é a mim que posso expor. É de grandes poderes, de saberes antigos e não reconhecidos. É de belezas muitas sufocadas, porque ininteligíveis, que tememos o que não entendemos. É de solidão melodiosa e brilhante, e gelada e dura. É de dores muitas, secas, encolhidas.
E assume formas as mais estranhas o eu, ao outro. É de música o de uns, de imagem o de outros, o meu de palavras, como tantos, de sentimento amorfo o de outros. De alguns é casa quente, e alimento, de uns provisão, de outros riso e gracejo, de outros lamúria e despojo. Há os de muita matéria e vazio, raso-estéril por querer desconhecido. Há profundos tanto que insondáveis. Há céus vastos e abismos. Cada qual único, múltiplo, multifacetado. Há que se não surpreender, e caso surpreso, há que se não afastar de susto, que também somos de muito carecer...
Por isso são tantos os choques, tamanhos os gritos, os medos. Sabemos pouco. Aprendo e conheço de tanto, tantas vezes, e é tão pouco. Mesmo assim prossigo, até um dia vencer o que temo, o que não posso. Ou até ser vencida.
Felizmente esse é o único medo que não conheço.

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