terça-feira, janeiro 23, 2001

É tanto a dizer, que nada digo.
Bem, na verdade digo. Mas digo menos do que quero, digo diferente do que quero. Durante os dias em que estive imersa na estória que eu narrava, tinha o tempo todo algo a dizer, por mais que já tivesse dito. Escrevia a qualquer momento, carregava o lápis e o papel como quem carrega remédios. Escrevia muito, louca e longamente.
Estranho isso de a obra já existir dentro do artista muito antes que ele a perceba, a entenda e a execute. Mas é mesmo o que me parece, quando atento para a forma pela qual o meu texto fluía para o papel. Inteiro, seqüente. Um só, como a teia que a aranha fia e mesmo que ninguém entenda, ela entende, ela sabe. Eu sabia o que gerava, sabia o que nascia de mim de forma tão doce e dolorida que muitas vezes me levava também as lágrimas e o sono. Era catarse.
A compulsão – e já não vejo compulsão como algo a ser combatido, em muitos casos – havia mudado de objeto, desde meus tempos, aparentemente tão distantes, de internauta compulsiva. Eu precisava do meu texto, aquele que estava em mim, precisava que viesse à tona e saísse, precisava das letras novas e vivas que eu vertia como quem respira. Não há nada de que me lembre ter precisado tanto. A compulsão pelas palavras havia tomado a frente de todas as outras. Eu não precisava mais de ponto de apoio algum, não precisava mais de muletas. Eu sabia voar.

Rio de Janeiro – 24.01.01

Não há necessidade de som ou imagem, nenhum gesto, nenhum sinal. É saber simples e fundo. É Alma.
Nada se fala ou pensa, e vou. E ir, eu sabia agora, é muito mais e muito menos do que falar ou pensar. Para onde não sei. Para longe ou para dentro, não sei. Sei que vou, somente.
Alma em silêncio, e não por falta de palavras, que sobram e transbordam . Já há muito, desde antes que eu pudesse me lembrar com a mente, conhecíamos o desnecessário de palavras, ainda que preciosas fossem. Também o era o silêncio. Silêncio de aprender e acariciar. Compartilhar silêncio era de se aprender muito, e aprendêramos muito. Havia também o desnecessário de luzes, de saberes, de imagens. Como um escuro de aprender, de explorar, um silêncio escuro de ser muito, e muito dentro. Alma me ensina o silêncio e o escuro às vezes, e essa é uma delas.

- Tens medo? – E era um escuro grande e fundo, e silêncio, e cansaço, e vida pouca, e vazio. Quis saber se era tudo eu. Se era só eu. Eu tinha medo.

Olhei apenas. Medo e ousadia. Alma sorriu. Mergulhei.
É um lago, o fundo, busca por ar, um tubo até à tona. Vivo e atento, e móvel, e humano, e não-eu. Mas traz um ar raro, inconstante, por isso o amo.Estou asfixiando, tenho medo de morrer. Preciso rastejar no lodo do fundo do lago, à procura do tubo. Móvel, insólito, fugidio, às vezes não posso alcançá-lo. É como se brincasse, e eu prevendo mil mortes, morrendo todas de me ver asfixiar. Às vezes o encontro e respiro. Só o suficiente para sobreviver, mas sem alívio, sem conforto. Aflição entranhada, constante – de sufocar e de respirar – de não saber quandos, não saber porquês. Profundo escuro silêncio, quero fugir. Mas há o tubo, e não o deixo. Rastejo e o busco, e sofro, e grito. Há um de fora, um de cima, e também o desejo. Grande e amplo, e som, e movimento, e vida rica e cheia. Mas não o sei, e é mais medo. Fracassei.

- Por que te prendes ao fundo? Por que te escondes? – Era só voz, eu não a via.

Baixei os olhos, raros. Só os baixava em raras horas, e quase nunca diante de Alma. Mas esconder era coisa que sabíamos muito, e foram muitos sóis e luas, muitas palavras, e eu sabia. Víramos sonhos e delírios, temores tantos e tão frágeis que estilhaçavam, e não havia do que fugir. Dissecáramos horrores e medos, descobríramos o enfrentar, o mergulhar. Superáramos o esconder. Eu negava tudo agora, e esquecia e regredia e reassumia mazelas antigas e me envergonhava. Retornava agora a um escondido trêmulo, vacilante. Minha voz pingava lenta.

- Não posso – Não sabia mais nada.

Alma sabia, alma sempre sabia. E era de mostrar e ensinar, e por isso era Alma. Fora era onde eu ia, onde eu queria, mas não o suficiente. Era água, espelho, vidraça de prata fria, reluzente. Era luz forte e macia, difusa e boa. Círculo, caminho invisível, querer, procuras muitas instigantes. Era temor também, vida de temor e prazer. Som de pássaro e vento. Um tudo maior do que eu podia entender, mas entendia.

- Vem e olha – e eu entendia

O de fora, perto e difícil, o caminho, a coragem. O sair de mim. Não era a hora.
Agora era de ver, de crer, não de agir, e aquietei. Haveria o tempo de ser, e era certo. Eu já sabia o voar de fora, e ainda não voava. Agora eu sabia o nadar de dentro, e o faria sem ajuda, muito cedo, muito logo.

Eu aprenderia a deixar de amar as dores.

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