sexta-feira, outubro 19, 2001

Estava tudo cinza quando a mulher olhou o céu. Não que olhasse querendo ver alguma coisa nele, que sabia desde criança que céu cinza é só cinza, e pronto, não tem nada que alguém queira ver. Mas olhou. Aquele olhar de se tentar fugir pelos olhos, mesmo que para o cinza. Se ela pudesse – e podia – ir com o olhar e se perder naquele nada, então estaria provado que nada mais tinha importância. Só o olhar.
Uma nuvem cinza no céu cinza se destacava um pouco pelo fato de ser mais clara e se curvava lânguida ao longo de meio céu, esguia e preguiçosa. A mulher tratou de vê-la arco-íris, sentindo-lhe as cores que não tinha. Era mulher. Mulezinha, dizia-se. Mulezinha era adjetivo do tempo de criança, que se dizia dos meninos que choravam ou tinham medo. Mulher parecia então um menino que chora, e tem medo. Era assim que se sentia, mulezinha.
Enquanto seu próprio olhar tirava do cinza o arco-íris que a nuvem não era, ela pensava. Pensamentos de mulher. Não que ser mulher lhe desagradasse. Não que perder aquele sangue, parir aqueles filhos, chorar aqueles vazios, querer aquele... aquele... aquele o quê, mesmo? O que queria a mulher, afinal? Talvez quisesse só saber o que queria. Enfim, não que tudo aquilo a fizesse desgostar tanto a ponto de enfastiar da feminilidade. Era dela. Não seria mais do que mulher, nunca.
Deixou que os olhos caíssem do céu, pousando sobre umas árvores solitárias e uns pássaros – machos ou fêmeas? – que voejavam em torno delas. Procurou de novo o seu arco-íris cinza, já não estava. Fora com o vento, talvez. Veria outros se quisesse. Talvez não quisesse mais, não tinha importância. Não ser mais do que mulher também afinal não tinha importância porque assim como árvores, pássaros ou homens ela era só o que era. Nem mais, nem menos. Não lhe fora dado florir feito árvore, voar feito pássaro, enrijecer feito homem... Riu, pensando que enrijecer era privilégio e obrigação masculina. Aquela dureza desgovernada, parecendo nunca caber onde e quando se manifestava, fazia-lhe uma inveja divertida. Porque tinha controle sobre a sua não-rigidez, seu choro, seu medo. Amolecia e se fazia fluida e frágil como quem dançava, e não como quem caía. Sentiu-se bela, então, quase mágica. Não mais do que mulher. Mais do que mulezinha.

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