quinta-feira, outubro 25, 2001

Sic visum Veneri – II
“Era grande de olhar, o cãozinho. Um grande que não se explicava porque mora no olho de quem vê. Viam-no leão. Temeram-no e o isolaram com grades cinza, fortes e frias. De vez em quando alguém mais corajoso enfiava a mão assim entre as grades e o tocava. Então ele exultava porque podia voltar a ser cãozinho, e pulava, e avançava, e era essa mesma alegria doida de cãozinho que levava embora o corajoso, tomado de pânico. Ele não ficava surpreso, só triste.”
Como podia saber tanto? Quem lhe dera esse sobrevoar almas e histórias, como se as tivesse vivido mais do que seus donos? Esculpir palavras ao longo do tempo torna a pessoa uma espécie de bruxo. Aprendera a ler pessoas em vez de palavras, também, e agora era como parir com as mãos. Parir era proibido dizer. Disse gerar, então. Mas não eram novos os seus filhos-palavras. Talvez fossem-lhe mesmo anteriores. Não importava. Havia começado, haveria de terminar.
“O pássaro grande pousou entre as grades. O cãozinho olhou, somente. Seu olhar atraía em vez de amedrontar porque era olhar de cãozinho e não de leão. Das grades cinza para dentro era tudo cinza, bruma escura encobrindo as pedras com que o cãozinho costumava brincar. É, sim. Ele brincava de cortar pedras, que ficavam muito brilhantes e afiadas. E não parecia um brinquedo perigoso, porque ninguém jamais atravessaria as grades.”
Sentiu raiva, então. Dos outros e de si mesmo. Raiva desse irresistível fazer-se compreender. Raiva de compreender. Sentiu de repente falta da covardia que nunca tivera, pássaro de voar e ousar... e pousar. Ensurdecedor o atropelo de palavras. Chocavam-se como nuvens em céu de criança, com estrondo de multidão em pânico. Pânico.

(continua)

Sem comentários: