sexta-feira, outubro 26, 2001

Sic visum Veneri – III
“O pássaro grande pousou entre as grades e olhou, olhou. Havia os olhos do cãozinho, e brilho, e bruma. Entrou, e o cãozinho de tão feliz não pensou no perigo...”
“O pássaro grande pousou entre as grades e olhou, olhou. Entrou, e se feriu no brilho cortante das pedras-brinquedo. O cãozinho rugiu um cuidado de leão, e o pássaro grande virou medo e dor, preso pelo olhar.”
Desviou os olhos de novo, com indignação. Havia cinzas esparsas no chão. Cessara o vento, estava frio agora. Traiçoeiro o tempo, fascinante, cheio de caprichos. Volúvel, macio-quente, inebriante, perfumado, álgido, incerto. Eram assim as forças da natureza, dignas de raiva e paixão. Tentou por um segundo encontrar a raiva de novo, necessária. Não foi difícil.
“O cãozinho fechou os olhos libertando o pássaro grande – ou talvez os tivesse fechado para chorar – e logo percebeu dolorido a sua ausência. Talvez tenha ido embora para sempre, talvez volte, talvez esteja ali ainda, entre as grades, olhando... Mas será preciso abrir os olhos para saber.”
Desejava tanto que não fosse aquilo. Nada mais oportuno do que o equívoco agora. Era verdade, contudo. Agora pior, era verdade conhecida e manifesta embora não fosse ser mesmo compreendida por mais ninguém. Não precisava. Não podia. Arrancou célere as folhas de papel como quem arranca ervas daninhas. Despedaçou-as uniformemente, com calma. Pousou-as delicadamente no chão, ateando-lhes fogo amarelo silencioso. Ofuscava um pouco, mas aquecia. Voltou ao papel, e permaneceu ali então por longos minutos, olhando o branco como que esperando que nele surgissem por si mesmas as palavras que não conseguia dizer.

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