segunda-feira, outubro 29, 2001

Precisava admitir, e admitiu. A imagem invadia, transformava, doía, indignava, escavava sem pena o lugar e o ocupava. Experimentou passar por ela, experimentou entender que era isso o que queria, mas de repente desapareceu o querer. Todo.
De repente não queria mais. Esqueceu num piscar de olhos o querer-é-verbo-transitivo-direto-quem-quer-quer-alguma-coisa, e tratou simplesmente de não querer. Transcendeu o cotidiano como quem não entende os próprios limites, e então combinou tacitamente com o universo que ao menos por um momento não haveria interação. Receber e perceber, mais nada. Egoísmo na sua forma mais primitiva. Dócil abandonou lábios e olhos àquela entreabertura infantil de que nem se lembrava mais e relaxou. O mundo então cresceu, cresceu até perder toda a importância, e veio devagar a sensação de que tudo estava mais visível, mais claro.
O mar era como se fosse todo silêncio. Encaixava-se na cena com tamanha perfeição que mal ou não podia ser percebido. E era suave carícia sobre uma areia serena e lisa. Sobre ela, a concha. Valvas abertas e vazias, ocas mesmo. Piscou os olhos ante o aparente asséptico de água, areia e concha. Dentro dela, nada além da pérola redonda e solitária.
Queria-se festiva, a pérola. Preciosa e rara, e bela, cintilante e soberana. Pérola é uma dor que foi amortecida, mas ela – a pérola – não sabia. Exibia-se elegante e deserta entre as conchas vazias, como símbolo de algo que pouco importava o que fosse. Festa de dor de pérola iludida, reflexiva devolvendo ao mundo toda luz, e era tão triste.
A vontade era golpear a areia com a mão, assim de lado e depressa, e derrota-la, e à concha, e à pérola triste, mas o combinado era não interagir. Golpearia a areia chamando o caos. O fim do asséptico. Aquela concha pérola areia água perfeita era ofensiva porque sem vísceras. Sem vida. A vida é feia, desordeira, obscena, concluiu. Vivo significa imperfeito.
Em vez do golpe que já parecia o entornar de toda tensão, o jogar fora o peso, a cura... em vez do golpe, pediu à concha que fosse menos morta. Não houve resposta porque a perfeição não responde. Virou então a página da revista onde estava a foto da pérola e tratou de guarda-la rápido, enquanto ouvia o seu nome na pronúncia gélida da recepcionista do consultório dentário.


Sem comentários: