quarta-feira, outubro 24, 2001

Sic visum Veneri – I
Já não era a primeira vez. Virara uma espécie de ritual involuntário aquele sentar ou deitar diante do papel em branco, lápis na mão, e só. O olhar enchendo o papel de palavras que a mão não recebia permissão para escrever. Era como uma invalidez.
Irritava-se com a invalidez. Repudiava-a como se assim fazendo fosse possível expulsa-la como mulher adúltera. Perda de tempo. Do que era incapaz não seria outra coisa, não por força. E de certa forma sabia disso, soubera sempre, mas admiti-lo era como trair a si mesmo.
Permanecia ali então por longos minutos, olhando o branco do papel como que esperando que nele surgissem por si mesmas as palavras que não conseguia dizer. Mas como, se nem mesmo ousava pensa-las, fortes que eram? Dura a vida de quem é todo palavra. Mais dura ainda a vida de quem é todo palavra que precisa ser lida. E foi. E quase se arrependia de ter-se feito ler. Palavra lâmina que fere os olhos e quebra à toa. Sentia culpa, e medo, e dor. Pobre grandeza inútil vulnerável. Viu-se bicho em seu medo-fúria, e só então pingaram palavras.
“O cãozinho rugia feito um leão. Desde muito cedo em sua vida ele aprendera que deveria rugir alto, para enfrentar os perigos ou sugar do próprio rugido a coragem para enfrenta-los. Rugir feito leão exigia muita força de um cãozinho, e isso o fazia muito frágil.”
O vento incidiu sobre as folhas de papel, levantando-as numa dança ruidosa como festa, ou como gargalhada debochada. Destruiu com a mão espalmada aquele acinte do papel, coisa de quem sabia mais do que devia. Ignorou com esforço o próprio desconforto. Havia mais o que dizer.

(continua)

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