sexta-feira, maio 03, 2002

Pousa de novo na minha janela. Já não se pode saber se de novo ou outro. É que os pássaros, embora não sejam de forma alguma todos iguais uns aos outros, são todos tão iguais ao que desejamos num pássaro que somos incapazes de distingui-los. Pousa, e lá está, sem nada fazer além de ser e estar.

É livre, de uma liberdade transparente, esvoaçante, que eu não vejo mas sei que é ali na forma de uma aura lilás. Eu a quero azul, mas é lilás porque os pássaros são livres, aura feita de liberdade e canto. Sinto um aperto bom no peito, como se pousasse em mim e não na janela. Beijo-pássaro. Quente, móvel. Tão pequeno e inquieto que tenho medo. Mas sei que a janela também sou eu, então se em mim queima essa vontade repentina de que ele esteja ali para sempre, também o sente a janela, é possível. E caso ela o tente aprisionar? E tentando, o fira, ou não o ferindo – pior – o afugente? Censuro-me com força por ter pensado ser pior perde-lo que feri-lo. Passa. Temo o ímpeto de minha janela, mas nada posso fazer. Espero.

Dou-lhe um nome, rápido, como na pressa de torna-lo ao menos um pouco meu. É tarde fresca no Alto da Boa Vista. Dindi, penso, sem-jeito. Não contarei a ninguém, mas será Dindi, e pronto. O engraçado é que eu jamais havia cogitado dar nome a um pássaro de gaiola. "Se um dia você for embora me leva contigo, Dindi...". Nunca dei nome a pássaro prisioneiro porque sei que todo pássaro é feito de vôo e de ir embora. Não cabem em gaiolas. Nelas, não são pássaros. Olho através da janela, e de Dindi, e lá está a mata mágica do Rio de Janeiro. Ainda está lá, solene, como que infinita de tanta fragilidade, encravada no meio da cidade como um selo vivo. A floresta redime a cidade. Sorrio de orgulho do meu lugar.

‘Dindi é nome de mata!’, ouvi indignada um amigo rir, certa vez. Entendo agora. Imagino como quem lembra... O maestro olhando a mata, apaixonado, e com gestos invisíveis tornando suspiro em música. Havia mais matas, antes, e mais paixão. Mais pássaros, mais suspiros, mais música...

Agora ele canta.

Não, não estou sonhando. O pássaro olha para mim e canta. Fervo de tanto ser, e dentro é como que uma dor doce que sorri e cresce, e tenho medo de não ser suficiente para ela. Tambores soam no peito, mas é difícil respirar lento e leve o suficiente para ouvi-los. O olhar vibrando de coragem, tentando aprendê-lo em formas e cores. Talvez ele seja um sabiá – nada sei de pássaros, ou de vôos, fui sempre do chão – ou um coleiro, ou um anjo. Sei que canta sem o medo que preciso que ele tenha, para que não veja o medo em mim. Faz sua serenata não solicitada, decidido e indiferente. E me olha ágil, firme, como que pedindo resposta.

Não sei cantar de pássaro, e ele me olha. Ah, eu cantaria, sim, o beijo-pássaro. Cantaria coragem e voz. Vôo forte e pouso leve, leve. A mata-casa que vai sumindo, embora uma Floresta da Tijuca tão enorme quanto o quadrado da minha janela se mostre agora, exibida. E é tudo que vejo de não-meu além do castanho Dindi.

Não-meu. Eu sei, mas finjo que não.

Sendo feito de ir embora, não foi. Não ainda. Se for, não haverá ‘me leva contigo’, eu sei. E espero que não vá. Não agora. Espero que espere. Ao menos até que eu o escreva inteiro, de todas as parcas formas que compõem o que afinal é a minha forma de cantar.

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